segunda-feira, 28 de abril de 2008

Escola do Estado ou escola pública?

Sintomático na actual situação política é o facto de a relação entre o Governo e o Parlamento ser difícil ou fácil consoante se trate de questões económico-financeiras ou de questões de outro tipo. Quando se trata da economia, o Governo aparenta ter certezas e aparece disposto ao confronto. Sobre as restantes questões, na maior parte das vezes, o Governo parece ter dúvidas e é ele próprio que se encarrega de organizar, como um “puzzle”, os “velhos” consensos unitários. (...)
Sem dúvida que a valorização do argumento económico era hoje fundamental, para compensar o lastro de um processo revolucionário em que esse argumento só não aparecia subordinado no momento em que era preciso pagar as facturas. Além de que a redução do campo de confrontação política ao argumento económico é possivelmente o preço para a estabilidade de um Governo minoritário. Tudo isto não pode, porém, fazer esquecer que a redução da luta e coerência política à defesa de uma política de estabilização e saneamento económico-financeiro, ou mesmo de crescimento e obtenção de certos objectivos numéricos (uns, aliás, excedidos, outros nem sequer atingidos), não chega para reconverter as estruturas e mentalidades, mesmo só na esfera da produção.
Um projecto que seja, pelo menos, uma política global de desenvolvimento e queira ter um longo prazo não poderá, por exemplo, separar o progresso económico da reforma educativa. Os desafios simultâneos da democratização, da integração europeia, da revolução tecnológica, não só não consentem a consagração legislativa do imobilismo no sector de que mais depende a formação e “acumulação” do novo capital humano para o futuro, como exigem uma perspectiva determinada, nova e coerente da reforma da Educação.
Neste plano, a nossa tradição estatista, centralista e burocrática é, aliás, pesada. Após uma dúzia de anos de revolução democrática, o ensino não estatal continua apenas a representar 10 por cento do total, quando nos restantes países da Europa vale entre 20 e 80 por cento do total. Dir-se-ia que a “Educação Nacional” do antigo regime não fez mais do que ir ampliando cada vez mais as suas estruturas, órgãos e meios financeiros, ao mesmo tempo que ia perdendo o seu sentido e idiossincrasia original, até chegar, por isso mesmo, à extinção total do seu sentido formativo que, nalguns casos mais lamentáveis, chegou a implicar a perda do mínimo sentido de responsabilidade pedagógica.
É perante esta realidade agigantada na forma mas vazia no conteúdo que se pergunta se o que há a fazer é apenas melhorar o sistema educativo ou não será antes reformá-lo. Quem duvida de que é necessário, pelo menos, flexibilizar a oferta de educação para a tornar apta a responder a desafios profissionais cada vez mais diversificados e a projectos culturais cada vez mais autónomos, incapazes de ser respondidos, de uma só vez e igualitariamente, do alto da pirâmide estatal? Quem duvida que é necessário sair dos restos, extensos mas desanimados, do regime da velha “Educação Nacional” (mais próprio de uma sociedade homogénea e fechada) para o regime da “Liberdade de Educação” (mais próprio de uma sociedade pluralista e aberta)? Quem duvida que depois da hora da democratização do ensino chegou também a hora do pluralismo educativo?

A questão não é só de eficácia, qualidade e dinamismo da educação numa sociedade mais aberta, plural e móvel. É, também, a dos limites financeiros do Estado e dos contribuintes e a da justiça relativa entre as famílias. A despesa da educação em Portugal ronda os 3 por cento e anda abaixo de um terço da média dos países da CEE, mas não se vê como é que se pode pedir mais e só a um Estado pobre o necessário crescimento do investimento nesse sector, quando tal investimento tende, aliás, a ser mais capital-intensivo. Em suma: faltam dinheiro, instalações e professores (apesar do numerus clausus), e não se vê como é que os contribuintes ainda estarão dispostos a alargar os cordões à bolsa para uma educação que, aliás, não transforma ou lidera positivamente o processo da mudança social e tecnológica e onde a relação custo-benefício parece ser baixa. Por um lado, a injustiça, os fracassos e as dificuldades de acesso institucionalizam-se. O Ensino Superior Privado é crescentemente procurado, mas as famílias que optam por ele acabam por pagar duas vezes, através dos impostos como que continuam a sustentar o ensino estatal e das propinas com que retribuem o ensino particular por que optaram. Por outro lado, os pobres estão a pagar a educação dos ricos pois estes disfrutam do ensino estatal nas mesmas condições de quase gratuitidade e chegam proporcionalmente em muito maior número aos escalões superiores da pirâmide educativa.
Vamos então deixar quase tudo na mesma? Ou vamos começar por alterar a própria noção de escola e da sua relação com o Estado, desde o projecto educativo até ao estatuto jurídico e modo de financiamento. Não se trata, em suma, apenas de reconhecer ou não o ensino não estatal, com mais ou menos espírito de tolerância, como já o fazia a Constituição e o faz agora a Lei de Bases. O problema é saber se os vários projectos educativos, consubstanciados através da escola, estatal ou privada, não devem ser postos no mesmo pé, com idêntica autonomia jurídica e financeira, idêntica responsabilidade pública e idênticos apoios do Estado. O problema é saber se o Estado, em vez de financiar as escolas, não deve antes financiar os educandos e as suas famílias, segundo as respectivas carências, de modo a evitar gastos com o ensino dos que não precisam dessa ajuda, permitir a todos escolhas mais amplas, valorizar a responsabilidade de docentes e discentes pela gestão dos seus próprios estabelecimentos de ensino e introduzir um salutar espírito de competição inter-escolar que só pode favorecer a qualidade do ensino.
Não se trata, pois, de multiplicar as escolas privadas, mas sim de lançar as bases de um sistema educativo compatível com as condições, a iniciativa e a responsabilidade dos seus vários componentes, agentes e beneficiários. Toda a escola tem de ser, aliás, pública, no sentido de prestar um serviço social e corresponder a exigências de aptidão e qualidade definidas pela lei e controladas pela autoridade democrática, segundo parâmetros comuns, quer se trate de escola de iniciativa privada ou da de iniciativa estatal. Só assim, de resto, a “instrução” poderia voltar a ser “educação”, em vez de mera transmissão mental de conhecimentos, mais próxima, pois, da identidade e dos problemas das comunidades em que se insere e de uma reconstrução humanista de toda a formação escolar. Só assim, também, a escola se aproximaria do processo de renovação técnica da sociedade actual e das suas exigências de constante adaptação e mobilidade, deixando de ser um instrumento para fazer doutores, numa modificação que será indispensável perante o mercado de emprego substancialmente alterado dos anos noventa. Só assim, por último, a escola se tornará verdadeiramente “livre”, como era ontem uma ambição laica, mas hoje é também uma ambição do mundo cristão.
O papel do Estado continuará a ser fundamental, sobretudo num país com as carências do nosso. Mas a sua primeira obrigação é também a de favorecer as condições de libertação e responsabilização das instituições e cidadãos que se movem no seu âmbito. É por isso que seria um grande passo em frente que, ao elaborar-se uma Lei de Bases do Sistema Educativo, ela pudesse desde já fazer-se à estrada com a mira na educação do futuro ou na educação em liberdade.


(artigo no Diário de Notícias, 21 de agosto 1986)

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Revolução e Constituição


(...)

Em todo o trajecto recusou-se uma Constituição que pudesse surgir por via plebiscitária ou referendária – talvez porque à Constituição só se deveria chegar através do próprio “processo” revolucionário. Em comparação com uma democratização como a grega, por exemplo, a “legitimação eleitoral” chegará, entre nós, por sua vez, relativamente tarde, quando os problemas já haviam encontrado soluções consumadas por outras vias. Por outro lado, o processo revolucionário progrediria muito rapidamente pois, entre “consolidar para avançar” ou “avançar para consolidar”, a opção da cúpula político-militar seria a segunda. Em relação a este trajecto, como dirá Miguel Galvão Telles, “da perspectiva do direito do período revolucionário, a Constituição é o seu ponto de chegada”.
Na sequência da mesma demonstração, é também sintomática a verificação de que, em vez de se apresentar, liminar e preferentemente, com uma clara hierarquia das fontes de Direito e ordenação do sistema normativo, ou como cabeça de uma ordem jurídica, a Constituição se revela, sobretudo, como “plano” e “molde” de um “projecto” no sentido político-normativo, também aqui, pois, na linha directa de descendência e extensão da Revolução. De resto, vêm a repassar mesmo o texto constitucional todas as autonomias e formas de participação “libertadas” pela Revolução, a qual fora também uma abertura às revoltas ou sub-revoluções sectoriais e zonais, mesmo àquelas que, numa reordenação coerente do todo, poderiam parecer de problemática compatibilização ou até contraditórias entre si.
É claro que a Revolução sempre operaria como o “ovo” da Constituição, na acepção de que aquela já contém o princípio ou a potência da ordem que nesta última se irá imprimir. Também se sabe, como diz Castanheira Neves, que “a revolução constitui sempre um seu direito e não pode prescindir do direito”, além de que cumpre “uma parte da missão que, em período de estabilidade, pertence à Constituição”. Não se ignora que há mesmo nela algo de recondução de uma “ordem” perdida (...) Mais do que isso, para H. Berman, toda a tradição “legal” do Ocidente nasceu de uma “Revolução” e durante séculos tem, depois, vindo a ser periodicamente interrompida e transformada por revoluções. Mas é evidente que a Constituição se poderia ter emancipado ou, até, rompido com a linearidade formal do processo, embora em perfeita compatibilidade com o auto-desenvolvimento da progressão económica e política da Revolução. Entre nós, ao contrário, não se tratou sequer só de uma adopção textual – ainda que não “recepção” em sentido jurídico – mas, mais do que isso, de um reatamento, síntese e reconstituição da Revolução através da Constituição.
Por outro lado, a Constituição veio não só reproduzir os conflitos da Revolução como quis mesmo representar aquilo que, na sua própria versão originária (n.º 1 do art.º 10.º), ela designara como “desenvolvimento pacífico do processo revolucionário”. (...)
A Constituição viria a corresponder mesmo à continuação da Revolução pela lei. Se não era apenas o seu sudário ou mata-borrão, funcionou, pelo menos, como uma espécie de respectivo “poder de revisão”, mas não só dentro da legalidade formal da Revolução, como de acordo com a continuidade desta e da sua obra. A própria extensão desmesurada da Constituição é um sinal da sua preocupação regulamentar em relação a um Direito que a Revolução já postulou, da mesma maneira que a linguagem algo “barroca” do texto pode ser vista como um eco vicinal da natural estridência ou “febre” revolucionária. (...)
O MFA, afinal, terá agido não apenas como autor da “ideia de Direito” que conforma a Constituição mas, através do conteúdo dos Pactos e demais actos de legalidade revolucionária, como verdadeiro poder constituinte material. (...)
Mas, como Jorge Miranda salienta, mais graves eram ainda “as limitações estabelecidas nesse Pacto, quer no respeitante à Assembleia Constituinte, quer no respeitante aos futuros órgãos de soberania – as primeiras como que poderiam, na prática, colocar sob tutela a Assembleia, as segundas correspondiam a uma pré-Constituição”. (...) O MFA detinha pois um poder de controlo sobre o poder constituinte formal. (...)
A Constituição e a Constituinte estavam, pois, muito condicionadas, contra o princípio, por exemplo, enunciado por Badura, de que “a vontade constituinte do Povo” tem de ser o produto de uma confrontação livre de grupos e opiniões que não pode comportar qualquer “decisão voluntarista”. De facto, os limites do poder constituinte parlamentar eram não só “numerosos”, como correspondiam às decisões fundamentais, isto é, às escolhas da “direcção constituinte”. Não só há um processo constituinte contínuo, como os elementos materiais parecem preceder as formas, as quais se limitariam a exarar a fórmula “definitiva” da lei constitucional. As “formas” jurídicas como que desempenhavam um papel veicular. (...)
O próprio mandato da Assembleia Constituinte tinha, aliás, algo de uma missão, não forçosamente no sentido militar ou político-militar da expressão, mas como cumprimentos de um objectivo estratégico definido pelo comando da revolução. Aparentemente estaríamos perante uma confirmação apócrifa, embora também num encaixe muito específico, da tese de Haugs, referida por Ehmke, segundo a qual no acto de se dar a Constituição o Poder Constituinte se tornaria num poder constituído, num órgão de Estado, com todas as consequências daí dedutíveis, nomeadamente em sede de revisão. É certo que esta Assembleia Constituinte provém de eleições directas, mas também é verdade que os agentes e as propostas partidárias haviam sido previamente aperfeiçoadas do ponto de vista revolucionário. (...)
Esta continuidade e contiguidade do MFA, à frente, ao lado ou na retaguarda do poder constituinte e da Constituição, ainda que sucessivamente diminuído, é muito relevante. Estabelece uma ligação umbilical prolongada para lá do próprio “parto” da Constituição e que só se extingue quando é considerada como assegurada e interiorizada pelo próprio movimento constitucional. (...) O processo Revolução-Constituição não tem descontinuidade interna embora se possa falar de sucessivos actos de “revisão” interna e se possa considerar que prevaleceu, através dessas sucessivas revisões, a interpretação mais “moderada” da Revolução.
Pode até ser possível verificar como é que, por uma espécie de astúcia interna da História, se veio a realizar uma aproximação recíproca e sucessiva entre Revolução e Constituição. De facto, através do contra-golpe de 25 de Novembro 1975, a Revolução conflui por si mesma para a Constituição, numa espécie de acostagem ou repouso que teria parecido antes impossível e que era um produto da transformação interna da Revolução. Essa aproximação é, porém, apenas recíproca daquela que, em sentido inverso e simétrico, a Constituição fora fazendo à Revolução. (...)
Tal como acontecera depois de Napoleão declarar a Revolução terminada, também aqui se abre a era da sua “codificação” e a lei passa a ser considerada o “depósito sagrado” que explica a rigidez prolongada até à própria interpretação. A Revolução não só não acabara como “superintendia” a Constituição, embora esta, por sua vez, viesse a transformar em “definitiva” essa legitimidade antes “provisória”. A Constituição seria mesmo a continuação da Revolução “por outros meios”, os meios mais estáveis e mais respeitáveis do Direito Constitucional. Em última análise, a Constituição poderia ser vista como a Revolução formal ou a forma da Revolução e a Revolução como a Constituição material ou a matéria da Revolução. (...)
Neste quadro, a verdadeira polarização dialéctica seria entre a Revolução e a Constituição de um lado e a realidade política, económica e social emergente, do outro lado, mais do que entre Constituição e Revolução. Afinal, se Revolução é o oposto de Evolução é-o não só pela ruptura que identifica a sua concepção genética, mas também pelo arrimo fixista em que depois se barrica ou entrincheira. (...)
Só por a Revolução não ter por intérprete um partido, uma chefia, mas um “documento”, está já aberta uma radical expressão de possibilidade democrática. Esse simples facto vem expô-la à crítica e confronto, no que será um permanente desafio ao seu próprio “mito”. (...)

(in "Teoria da Constituição de 1976 - a transição dualista", p. 136-148)

terça-feira, 8 de abril de 2008

Revolução, 1976: Passado, Presente, Futuro


Revolução é, em sentido etimológico – como o lembrou há tempos Castanheira Neves (“Revolução e Direito”) – rotação astrológica. É, aliás, quando a curva do movimento revolucionário se começa a aproximar da sua rotação completa, e sobretudo nuns momentos de paz, longe dos pólos da elipse, em que todo o corpo em movimento se reduz à linha da trajectória percorrida, que melhor se capta a origem e o destino do percurso e podemos graduar com precisão os ciclos espacio-temporais do seu passado, do seu presente e do seu futuro. A passagem de mais um ano mais ajuda a esta revelação – desfile de toda a revolução, num só palco ou tela, através dos seus três «andamentos» principais:

a) O ciclo épico – romântico; b) O ciclo lírico – fantasista; c) O ciclo realista – racionalista.

É uma classificação ajustada a uma revolução que tem muito de literário e num país que deve muito aos poetas. A dialéctica hegeliana da tese, antítese e síntese seria demasiado abstracta e geral – e portanto cortante e delimitativa – para um país de «padrões», «bandeiras» e «velas» e uma revolução de «palavras de ordem», «comícios» e «casos de informação» (Renascença, Televisão, R.C.P., Século, etc …).
1) O primeiro foi o ciclo épico, completamente encerrado com o 25 de Novembro e já com o balão a esvaziar a partir da queda de Gonçalves. Foi a fase da subida do papagaio puxado por mãos infantis, com vento de feição, soprado por foles interessados.
Duas forças de sinal contrário mas de resultado conjunto – a iconoclasta e a utópica – traçam a sociedade de cima a baixo e de lado a lado, fazendo estalar toda a estrutura reticular das mínimas formas de vida colectiva e impedindo qualquer religação ou soldadura entre os vários fragmentos seccionados. A Revolução é sobretudo recusa – o negativo absoluto da ordem evicta. Sedenta de factos e emoções, a Revolução infantilmente não chega ao seu auto-reconhecimento e aspira a um modelo «paternal» ou «ancestral» de Revolução. É por isso que desconhece os seus limites.
2) O segundo é o ciclo lírico: A Revolução percebe-se a si mesma. Do mito da Revolução decai-se para a realidade da Revolução. Sente-se que a revolução tem já um passado. É a fase da revolução dos «puros», dos mais revolucionários entre os revolucionários. Esta purificação pode até parecer autofagia. É a fase dos revolucionários «bons» e «bens» a seguir à dos revolucionários «maus» e «feios». Em vez das curtas máximas revolucionárias aparecem os discursos, uma queda de ritmo, um abandono da rua, uma substituição do «teatro» e da «fita» pela «literatura revolucionária», e espreita mesmo um certo barroquismo. O socialismo é cândido: tão cândido que nem existe em parte nenhuma do mundo, sobretudo do mesmo mundo, socialismo semelhante. A Revolução é pura e contempla-se narcisisticamente mas, sem saber, vai ficando cada vez mais sozinha. O espírito já se foi com as potências do gólgota e a razão ainda não chegou. A Revolução dá-se a luxos formais, patina e é nesta fase intermediária que melhor se percebe o que as Revoluções têm de puro intervalo (ou recreio) na rotina já prenunciada de grande preguiça colectiva.
3) O terceiro é o ciclo realista: A chamada à terra. A Revolução sai de si, do seu processo interno. O processo revolucionário, de formal transforma-se em processo revolucionário real. Deixa de ser comandado só de cima, passa a ser desafiado de baixo. A Revolução tem que sair do seu casulo e estabelecer uma relação operativa com o mundo social a que pertence. Soluções em vez da bravata do mito (épico) ou do sentimento (lírico) da Revolução. É, sobretudo, um centro unívoco e definido em vez da decomposição violenta (romântica) ou barroca (fantasista) das etapas antecedentes. Nem as estátuas de mármore, nem as de cera, mas sim a direcção de um projecto concreto. O macho da Revolução encontra então a sua fêmea. Se até então a Revolução se desfasava da sociedade, por um lado, e do Estado, por outro, ei-la agora, porque cansada, já liricamente mole, possuída por ambos… e sabe-se lá se vorazmente.
Em que fase se encontra a Revolução Portuguesa neste momento? Formalmente entre a 2.ª e a 3.ª fases; realmente, porém, perante a necessidade de passar rapidamente à última, sobretudo dado o aperto das condições económicas. Estamos na fase dos «últimos pensamentos» sobre a Revolução. Esse é o gongo do último «round». A não se avançar para cumprir o ciclo poderia a «rotação-revolução» ser a de uma estrela cadente. É preciso respeitar a «passada» astrológica…
A racionalidade é mais precisa e determinada que o resto: deve chegar ao entardecer, depois do recolhimento lírico, mas antes da noite.
A racionalidade, além de precisa e por o ser, é, também, empenhada e criadora. Este último salto não deve ser um empurrão. Deve ser uma iniciativa, ou mesmo um «assalto». De facto, é então que começará – esperemo-lo – a única Revolução… definitiva …

(in “A Bordo da Revolução”, Ensaios de Análise Política 75/76, Selecta)

domingo, 6 de abril de 2008

Os católicos e a política

No mundo moderno, a relação entre os católicos e a política volta a estar na primeira linha, tanto da reflexão como da História. Por um lado, é o que resulta da origem, postura e doutrina de um Papa “empenhado” como João Paulo II. É a consequência do seu apelo a uma fé indivisível, assumida como “cultura” que há-de ser “plenamente assumida, pensada e vivida”, em todos os planos da existência, sem excepção. Por outro lado, é a própria história concreta, de hoje, nas Filipinas, Polónia, Nicarágua, Chile, Haiti, Timor até, na África do Sul também, que a tal incita. Aí a Igreja e os católicos (ou os cristão em geral) assumem um claro papel político, ao mesmo tempo de “libertação” e de “reconciliação” nacional.
Curiosamente, entre nós, “nação fidelíssima”, país católico entre todos (na idade da crença e no número dos crentes), o tema ou é esquivado ou apenas obscuramente aludido. A questão do aborto, o problema de um canal para a Igreja, ou, em geral, a influência pública através da Rádio Renascença, são os aspectos mais salientes de uma “intervenção” quase política. No entanto, além de avulsa, limitada e defensiva, essa intervenção tem envolvido mais directamente (salvo a questão do aborto) a organização da Igreja do que a totalidade do mundo católico. A Igreja está atenta e activa, como o demonstram os seus documentos pastorais, ou a intervenção dos seus bispos e sacerdotes, além da pedagogia institucional da Universidade e do ensino católico em geral. Há, além disso, significativos movimentos de leigos, sobretudo no interior da própria Igreja, e uma reiteração da referência pastoral ao “dever de participação política” dos crentes. Não se pode dizer, porém, que o “movimento católico” mobilize, abranja ou impregne, com vocação dirigente, uma concepção própria da vida social e política, no conjunto dos aspectos que esta reveste e com a implicação, coordenada e militante, dos vários grupos e energias de todo o “povo de Deus”.
É certo que, entre nós, não existe qualquer “ruptura” que possa explicar, como no caso dos países citados, uma “revelação” ou “actualização” tão manifesta da consciência política dos católicos. Mas é também verdade que em toda a Europa, mesmo na mais laicizada e normalizada, essa consciência cristã conhece formas práticas mais intensas, organizadas e permanentes de relação com a política e o Estado do que as existentes entre nós. No caso da juventude, essa tendência tende mesmo a ampliar-se, como o mostra bem o maior movimento juvenil italiano – o Movimento Popular. Mesmo os velhos partidos cristãos continuam a ter êxitos crescentes – surpreendentes até! –, como aconteceu em recentes eleições na Holanda e na Áustria. A própria construção europeia assenta originariamente na visão de uma unidade da cultura cristã do velho continente (como o lembrava recentemente um artigo de Xavier Pintado, a propósito do grande homem político católico que foi Robert Schumann) e a bipolarização política essencial na Europa é entre os representantes do seu “humanismo cristão” e os do seu “humanismo laico”.
Entre nós, é evidente que não é assim. O mundo católico e o mundo político não têm uma relação directa e una. O primeiro intervém sobre o segundo como “palavra”, mas não no meio dele, como “acção” católica. A maioria moral ou é minoria política ou está pura e simplesmente ausente do movimento de condução global da sociedade. Há uma desproporção enorme entre o catolicismo da missa dominical e o que isso representa como valor “normativo” e “prático” na direcção e funcionamento das estruturas dirigentes da nossa sociedade. Parece mesmo subsistir uma questão prévia de legitimação dos católicos para poderem intervir como tal a partir da sua identidade e dos seus valores, embora apenas nos termos e com os argumentos de afirmação comum dos cidadãos.
O que não pode deixar de admitir, em qualquer caso, é que esta questão é tão importante para a sociedade como para a própria Igreja. É importante para a sociedade porque a renovação “ética” necessária já se tornou entre nós num factor de demagogia eleitoral, mas não correspondeu ainda a nenhum resultado autêntico, duradoiro e profundo. Aliás, é duvidoso que essa renovação possa ser operada a partir de forças meramente políticas ou deliberações simplesmente “voluntaristas”, “moralistas” e “intelectualistas”, que, por um lado, invocam a “ética”, mas, por outro lado, tratam a “verdade” em política como manifestação de candura ou ingenuidade. A renovação “ética” para ser autêntica e eficaz precisaria de levedar por dentro da própria sociedade, através da cultura e da moral que a podem identificar e recuperar.
Mas a questão de uma nova relação entre os católicos e a política é também importante para a Igreja. É que os valores que esta representa enfrentam, hoje, um desafio crucial para o seu futuro e, em geral, para a experiência da própria fé. Falo dos seus valores e significados espirituais, mas também da escola livre, da informação aberta e responsável, da unidade da família como base de desenvolvimento social, da reconciliação entre “solidariedade” e “eficiência” no campo da produção, da mobilização cívica da juventude, do papel mediador dos grupos intermédios, da humanização da saúde e da política demográfica, da regionalização e promoção das zonas mais desfavorecidas. São tudo outras tantas zonas em relação às quais teria utilidade sistematizar uma política activa de inspiração cristã. Inclusivamente só uma política cristã poderia desempenhar o papel mediador e pacificador que, até há pouco, parecia ainda caber aos “militares” na sociedade portuguesa. Não será uma política de inspiração cristã que dividirá o mundo católico. Pelo contrário, será a sua ausência – como o demonstra a realidade actual – que provocará não só a divisão, como a anemia e o vazio, capazes de conduzir a uma desagregação progressiva da mais pública e enraizada forma de consciência moral do País – a cristã.

Há, pelo menos, que pôr as questões. Por exemplo: a missão da Igreja é a construção de uma sociedade nova ou, apenas, a “denúncia” dos “pecados” da sociedade existente? É possível confinar a fé religiosa ao momento e lugar do sagrado, enquanto todas as restantes formas de vida se podem desenvolver segundo uma análise em que a fé não entra? É possível ignorar os valores cristãos na vida pública, sem com isso operar uma ruptura com as próprias raízes históricas, culturais ou religiosas da sociedade portuguesa? É possível superar a crise contemporânea e nacional, mantendo este dualismo entre a vida interior dos homens e a vida pública das comunidades? Será possível que S. Tomás reine para dentro de uma porta e Machiavelli no meio da praça pública onde essa porta desemboca?

Não se trata de desenterrar o machado de guerra de uma nova “questão religiosa”. Será necessário mesmo ultrapassar restos de clericalismo, ampliando pontes para o mundo laico, que repudiou também o anticlericalismo. A verdadeira tolerância, no entanto, é a que assenta na fortaleza das próprias convicções e os católicos não têm que ter uma atitude política passiva, clandestina, dividida, pessimista e subalterna. Não têm que deixar “laicizar” a mais importante parte do seu campo de consciência e acção – aquele que tem a ver com a “substância” e as “expressões” mais elevadas do seu ser social.
A geral fraqueza da sociedade civil portuguesa não ajuda. Contribui mesmo para a perda das últimas certezas dessa sociedade. A concepção dominante da História é ainda demasiado imediatista e é nesse contexto que se explica o activismo, dirigismo e crescimento do Estado como único arrimo para a erosão da consciência política colectiva. Mas há que reagir e os católicos, com a Igreja, podem bem ser a parte mais sólida dessa recuperação da sociedade civil. Até como via para reabilitar a política e evitar que esta continue a ser um puro jogo de superfície, onde a própria renovação “ética” acabe por se transformar numa nova demagogia. Talvez a renovação “moral”, a partir da sociedade real e dos seus valores profundos, entranhadamente cristãos, seja afinal mais simples e mais eficaz do que a renovação “ética”, a partir, outra vez, dos modelos da Revolução, do Estado e dos seus partidos. Aliás, o processo de reidentificação que a integração europeia nos oferece e requer – numa Europa que é também a Europa das Catedrais – é uma boa oportunidade para essa segunda forma de verdadeira auto-determinação da nossa sociedade – e não apenas do nosso Estado.


(artigo no Diário de Notícias, 7 de agosto de 1986)