quarta-feira, 28 de maio de 2008

Mitos, mística e místicos

A tensão no futebol parece grande mas se pudéssemos reduzir os conflitos da sociedade ou da política a um desafio de futebol – mesmo a um campeonato inteiro – ver-se-ia quanto se exagera a esse respeito.
Não sei também quantos desesperos aliviou o jogo de boxe entre Tyson e Holyfield. Mas sei que serão ainda mais os que serão digeridos pela colossal expectativa de uma desforra entre ambos. Em ambos os casos, a libertação de energia colectiva será provavelmente maior que a provocada pelo duelo Clinton-Dole, o que, aliás, tem o mérito de revitalizar a política. A mística no desporto facilita a racionalidade na política.
Ao contrário, a crise do Benfica é uma fonte de apatia considerável. Julgo que, descontando algum exagero clubístico, é uma das causas da crise no futebol português. No fim de contas é o clube com mais de metade dos adeptos do país – dir-se-ia o clube da maioria absoluta. A liderança é dedicada e laboriosa. Só que o clube flutua mas não anda. Ora esse é o terreno onde os pés se costumam atolar.
Agora sobe-se a aposta: liderar a luta pela limpeza no futebol e ganhar o campeonato contra tudo e contra todos. Imagine-se que sentimento colectivo (nacional?) de empolgamento nos restituíram as noites cheias da Luz! Receia-se é que falte o elemento mítico que o boxe exacerba e que parece constituir o “suplemento de alma” que faz a diferença no mundo da ultracompetição (a “alta” já foi ultrapassada).
É verdade que o grande perigo de um Estádio cheio é esquecer as dívidas. O factor “místico” no futebol é referido no feminino como “mística”, como se se tratasse de uma deusa pagã, vinda directamente da antiguidade, de um daqueles estádios onde se inventaram as competições. No entanto, tal factor também pode ser favorável às finanças.
Não sei, por isso, se é bom tratar das finanças desmistificando, como faz José Roquette, financeiro de golpe de asa e desportista de linhagem familiar. De certo modo, o futebol é um garrafal xarope antidepressivo, uma mezinha de saúde pública popular. Ora, um tónico da alma não se avia nos bancos, embora possa encher as contas bancárias dos clubes e dos jogadores, se estiver a ser eficaz. Tem afinal de lidar com uma espécie de doença psico-social, a que, de resto, não é ele próprio imune e é, por isso, que o “desportivamente correcto” funciona ainda menos que o “politicamente correcto”.
Percebe-se melhor assim que Pinto da Costa tenha explicado o seu sucesso como “paixão”. Esta nem sequer é a melhor receita para os longos matrimónios. Mas foi por essa via que Pinto da Costa se tornou o dirigente mais “mítico” do futebol português e, apesar disso, o que criou melhores condições para enfrentar a questão financeira.
Fernanda Ribeiro já foi a pé a Fátima e Holyfield diz que conseguiu esmurrar Tyson pela força da graça de Deus. Algures há mais forças que as humanas para ganhar a outros seres humanos. E o desconhecido é ainda a mais prosaica revelação da linha do infinito, apesar de ele próprio ter um campo de acção cada vez mais estreito. É disso que, por essa ou outra via, precisa o esforço concentrado e contínuo da vitória: uma ajuda “mística” e de “mitos”.

(Crónica semanal no Jornal “O Jogo”, 27 de Setembro de 1997)

terça-feira, 27 de maio de 2008

Debates Parlamentares: No 1º Aniversário da Constituição (parte I)



O Sr. Lucas Pires (CDS): - Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Primeiro-Ministro, Srs. Ministros, Srs. Conselheiros, Srs. Juízes do Supremo Tribunal de Justiça e da Comissão Constitucional, Srs. Constituintes, Sr. Cardeal Patriarca, Srs. Deputados: Há um ano, uma nova Constituição política encerrava, entre nós, um período revolucionário perturbado e abria o caminho à liberdade e à esperança de todos os portugueses num futuro consciente, ordenado e pacífico - tal como para os cristãos, no lance que separa o Velho Testamento do Novo Testamento.
É esta Constituição-menina que tão mal passara no ventre da mãe e que a ferros o 25 de Novembro ajudara a sair, que hoje tem, sem dúvida, pelas dificuldades do próprio parto, o direito a comemorar o seu primeiro aniversário.
Não se trata, evidentemente, de lhe erguer uma estátua! Até porque seria lastimável acrescentar a todo o rigidismo com que a criança foi vestida, jurídica e ideologicamente, a goma que as atitudes laudatórias sempre transportam. Do que se trata é de festejar a mística constitucional que o seu simples nome de baptismo - Constituição - já envolve e que foi um primeiro sinal de convergência das forças democráticas contra a mística revolucionária das forças totalitárias.
É por essa unidade das forças democráticas na intenção de dar uma Constituição democrática a Portugal que o CDS, em primeiro lugar, se associa a esta comemoração. E associa-se assinalando que a considera, não só uma evocação, mas também um aviso a todos os inimigos da soberania do direito e da Constituição que agitam e promovem a tirania dos governos de partido, dos governos de facto, dos governos de um indivíduo ou dos governos de uma casta.
Infelizmente, o chamado «processo revolucionário» viria a descobrir formas de assegurar a sua continuidade para além da entrada em vigor de Constituição. É uma atitude que, de resto, explora utilmente o facto de a Constituição ser, em grande parte, «o espelho mágico» da Revolução, através do qual, como nas histórias infantis, se quis fazer bonitas as coisas feias... A Constituição veio entre nós depois da Revolução, ao contrário, por exemplo, do que aconteceu em Espanha. O direito veio depois dos factos e não pôde, assim, constituir a própria substância originária da revolução democrática.
Por isso, a Constituição reflecte a luz mas não ilumina. É como o produto de uma inteligência abúlica ou estupefacta, aliás de certa modo tradicional e dominante entre nós, que descreve, analisa e critica normativamente os factos que a antecederam ou aferiram, mas não está fundada nem anima a inteligência criadora capaz de dirigir, seleccionar e transformar os factos que lhe sucedem. É daí que resultam tendências, quer para a desorganização quer para a anomalia, que têm na vida corrente portuguesa as traduções que todos conhecemos.
A razão que nesta Constituição fala é, por tudo isto, uma razão impura, como que incarnada num mitológico bicho de sete cabeças. Não é, por outras palavras, a razão pura, a que é, no sentido liberal e democrático, a razão de todas as razões e não só a razão de algumas razões, como foi a razão revolucionária, aliás estropiada e privatizada. É assim que esta Constituição foi transformada numa parte, e continua a haver quem a queira transformar por inteiro na Constituição fêmea de uma revolução macho.
Não é de estranhar neste contexto que o "inimigo principal" da mística constitucional e do poder da Constituinte, como órgão supremo da Revolução, venha depois, depois do 25 de Novembro, depois da própria Constituição aprovada, considerar esta Constituição como o processo revolucionário apenas provisoriamente congelado, isto é, como o patamar de eventuais avanços revolucionários e como a área-tampão contra desenvolvimentos futuros de sentido mais democratizante e mais liberalizador. Não é de estranhar que esses mesmos hoje apareçam a brandir a Constituição, ora como um "livrinho vermelho" lusitano, ora como um velho fantasma regressado para dissuadir projectos europeístas e conquistas liberais.
A curiosa metamorfose é esta: aqueles que eram e são partidários do mais completo positivismo político, aqueles para quem até a liberdade e a igualdade são apenas meios do seu próprio poder, esses são, hoje, os mais lampeiros arautos do positivismo jurídico e do integrismo fetichista da letra constitucional.
Não é por acaso que, hoje, os que haviam sido mais revolucionários que a Revolução se façam de mais constitucionalistas que a Constituição. Não é por acaso que partidários extremos da revolução acabam por querer afinal que a Revolução esteja para trás de nós. Não é de estranhar! Pelo contrário: é uma atitude muito elucidativa! É que, ao defender à outrance a Constituição como um museu de factos normalizados, estão essas forças a supor implicitamente que, do ponto de vista maioritário, a Constituição do actual futuro português deveria ser outra pois que, afinal, essa escolha do revoluto embalsamada é uma rejeição da liberdade constituinte futura do povo português! Mais: não pressentirão essas forças que a Constituição Portuguesa é hoje já ideal e realmente outra que não a mesma, pelo menos mais crescida no seu dinamismo, na sua vocação, e no seu espírito?
Senão, vejamos:
a) Em primeiro lugar, a Constituição tem ainda muito de apropriação exclusivista da Revolução, que separava abruptamente os vanguardistas e as maiorias, os classistas e os anticlassistas, a esquerda e a direita, e até o sector público e o sector privado, discriminando, permanentemente, a favor dos primeiros contra os últimos. O funcionamento dos mecanismos eleitorais permitiu, é certo, que a Constituição se tornasse mais integração do que exclusão. Mas tal integração refere-se mais, ainda, às pessoas do que às ideias e aos bens sociais e, mesmo em relação às pessoas, só por via eleitoral tal integração tem obtido realização. É, assim, indispensável caminhar no sentido de considerar a Constituição como instrumento de integração de todos os valores, bens e pessoas portuguesas, e não como instrumento de exclusão de umas contra as outras.
É que a história moderna não passa o tempo a olhar para a direita e para a esquerda. Não é de lado que tem os seus limites. Os seus limites estão atrás e à frente, no passado e no futuro, porque resultam de uma integração ou exclusão, sim, mas no ritmo da história europeia a que pertencemos! É à frente que se vencem as margens e não é, pois, à beira destas que é preciso estar em guarda!
b) Em segundo lugar, a Constituição coloca-se mais na perspectiva da ideologia do que na da acção. Oriunda de uma "Santa Trindade" socialista, com o seu pai, o seu filho e o seu espírito santo...
Risos.
...está inquinada por um "complexo de esquerda" que nela funciona como peso, em vez de, como alavanca de libertação. Na fase revolucionária a que corresponde, o fenómeno é, em si, explicável. Da facto, o marxismo é a mais simples e a mais positivista das resposta para a insegurança que o subdesenvolvimento cultural sente perante o mundo moderno. A entrada súbita e revolucionária neste ciclo histórico inclinou, assim, algumas forças – nem todas marxistas – à procura fácil do protectorado ideológico e provisório do marxismo.
Hoje, não só esta situação de insegurança política radical está ultrapassada, como, além disso, a primazia do viver e do pensar sobre o pensamento e a dogmática começam a ser patentes. Temos quase meio milhão de desempregados e uma impossibilidade manifesta de executar a parte mais generosa da Constituição – a que a todos reconhece o direito ao trabalho! As condições de vida degradam constantemente o estado de cumprimento de todos os direitos sociais da Constituição. E é caso para dizer, ao fim de mais de dois anos de ideologia socialista, que é finalmente tempo de pensar a sério nos pobres... (continua)

(4 de Abril de 1977, in Diário da Assembleia da República n.º 95, p. 3109 a 3213)

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Do socialismo em liberdade à democracia em liberdade


O discurso e as propostas do Partido Socialista não têm trazido muitas novidades, apesar, aliás, dos inúmeros “empréstimos” de que as suas actividades sempre se socorrem. Dir-se-ia até que as suas proclamações mais novas são, afinal, as suas proclamações mais velhas. Constituem, de facto, novidades, mas apenas no sentido de repescarem algumas antiguidades, as afirmações de que a revisão constitucional deve insistir na manutenção da “transição para o socialismo” ou de que os partidos da AD incarnam “o anti-regime”.
Para além de se tornar evidente nesta linguagem que a “Frente” não avança mas recua, constatam-se desde logo em tais afirmações duas originalidades, cujas contradições internas, por chocantes, as tornam ridículas. Por um lado, deve ser a primeira vez que uma Oposição democrática se nomeia Regime e acusa o Governo e a Maioria Democrática de anti-regime, arrogando-se o exclusivo na interpretação de uma ortodoxia oficial.
Por outro lado, deve ser também a primeira vez que uma transição se torna contínua. Perguntar-se-ia, aliás com legitimidade, como é que a transição continua se o PS pretende, justamente, manter tudo, quanto possível, mais ou menos na mesma. Transição para qual outro socialismo se o PS se parece identificar maximalisticamente com o desta Constituição? Retendo apenas o substantivo transição, não será até a ideia de mudança veiculada pela AD que mais se parece com esse potencial dinamismo e é pois mais regime no modo, embora não no objectivo?
A verdade é que, apesar de risíveis de um ponto de vista lógico, as fórmulas citadas, na boca do PS, não podem ser consideradas como inocentes ou descuidadas facilidades linguísticas. Mesmo que tenha a memória curta, como é próprio de toda a política conjunturalista ou eleitoralista, o PS recordar-se-á com certeza de ter sofrido as consequências de fórmulas idênticas. Regime e anti-regime traduzem um tipo de bipolarização que pertence ao glossário do antigo regime e, mais do que isso, ao de todos os regimes cuja vocação é de excluir autoritariamente em vez de compreender democraticamente. A “transição contínua” é, por sua vez, uma fórmula que julgo não ser senão uma versão benigna da arcaica moléstia da “revolução contínua”. Na transição para o socialismo, como na transição para o corporativismo, há o mesmo investimento onírico, o mesmo desperdício de energia e realismo, a mesma alienação inútil e exploradora. E a mesma ideia de transição que, nos dois casos, transforma a Constituição de quadro estável de garantias, regras e direitos, em movimento aleatório e dirigido, quem sabe se por uma desconhecida longa manus.
Mais detalhadamente, parecem vislumbrar-se nas fórmulas citadas pelos epígonos socialistas três pretensiosas ideias fixas. Primeiro, a de que o regime (em transição) deve continuar a ser provisório, balanceado e submisso, qual caminhante de alpergata que aguarda a famosa luz do fim do túnel. Segundo, a de que a fronteira do regime é o socialismo e não a democracia, havendo, portanto, uma espécie de ostracismo constitucional ou exílio interno para os que não sejam socialistas, aos quais é dispensada a liberdade suficiente até para ganhar as eleições, desde que só administrem o Estado, sem o governar, sem se porem contra o socialismo e a favor de um projecto alternativo, sendo a sua vitória apenas tolerada e servindo apenas de canapé ao momentâneo repouso do “guerreiro” socialista ou de intermitente ventilação à sua obra. A terceira ideia fixa dos socialistas portugueses seria a de que o PS seria o morgado do regime, o partido maioral, mesmo quando não fosse o maior, o partido institucional, ainda que larvar, o testamenteiro ou até o legatário do constituinte, o seu único filho legítimo, o interruptor, o fio e a lâmpada por onde se fará a tal luz por vir, ainda que o PCP lhe dispute, muitas vezes, tal legitimidade e insinue que, em termos de devir ou transição futura, o PS poderá ser relegado para uma posição de bastardia, para o que invoca até essa luz maior e ofuscante que seria a de “um sol de terra”...
Pelos vistos, será mesmo neste contexto que deve ser entendida a expressão “socialismo em liberdade”. A liberdade do socialismo seria a única completa e maiúscula. Essa seria a ideologia do regime, mesmo quando não chegasse eleitoralmente, como aconteceu a seguir a 2 de Dezembro, para ser a modesta ideologia do Governo. Também aqui a “teologia” resistiria ao pecado e mesmo à heresia prática. Só o socialismo persistiria, pois, como ideologia constitucional ainda que tolerante e mesmo permissiva. As outras ideologias seriam apenas a-constitucionais, embora faltassem as condições e , nomeadamente, o quadro político externo, que permitiria considerá-las inconstitucionais. (...)
Assim, se o PS não é ainda o partido único, a verdade é que diz que se a unidade se não faz à sua volta, então é ilegítima! Isto é uma monarquia “ideológica” liberal mas é ainda uma monarquia ideológica. Não é o partido único mas é o partido-mestre, intercalar entre o único e o vário, entre o socialismo e “o resto”, meio-único, mexicano ou institucional, sucedâneo do único – e também, nesta versão, afinal, intermediário ou intercessor, junto do mais único de todos os partidos, aquele que já é mais do que um partido, quando os outros ainda o não são bem, o Partido Comunista. É como uma escadaria, em suma.
Há aqui uma lógica de patrimonialismo ideológico que tem, aliás, a Constituição pelo seu lado. E porque não haveria de ser assim se a Constituição também está do lado do PS? Para um partido, ainda por cima sentimental, é indispensável que o amor com amor se pague. A Constituição, de facto, permite ao PS repousar sobre a predestinação a que ela o vota. A Constituição é, de facto, garante do poder ideológico, pelo menos garante de uma certa confessionalidade laica do Estado, tanto ou mais do que garante da liberdade. Demasiado fechada à volta de uma ideologia e de algumas organizações, a Constituição hesita demasiado entre o CR e o Povo, entre o “poder” popular e o poder eleitoral, entre os militantes socialistas e os votantes de todos os partidos. (...)
A Constituição é pois uma escritura da nova propriedade socialista do regime. (...) Numa visão mais pessimista, dir-se-ia, até, estarmos perante um esboço de “Estado Novo Socialista”, uma nova Democracia Orgânica, agora Socialista. Chega a poder imaginar-se que tudo se teria, afinal, passado como se o marcelismo tivesse podido finalmente, embora por interposta acção, avançar até à democracia ou ao sufrágio universal, como inicialmente, aliás, estava previsto, ao mesmo tempo que se convertia ou progredia para o socialismo, sendo certo que, como diz algures Eduardo Lourenço, “o corporativismo já comporta algum elemento socializante”. A hipótese é tão abstracta quanto macabra mas explicaria que, em termos de propriedade do regime, a nossa esquerda se comporte mais como a herdeira ou sucessora do antigo regime do que como a sua negação ou contradição. São categorias mentais idênticas que se reproduzem através das consciências e persistem tanto mais facilmente quanto se podem desculpar com o facto de ter havido uma revolução e até de serem os aludidos “herdeiros” quem parece tê-la feito e disputado em tumultuosas partilhas. Daí o regresso do “anti-regime” e da “transição que continua”.
O esquema aludido é terrificante do ponto de vista teórico, sobretudo quando pensamos que as referidas fórmulas do PS poderiam ser desculpáveis há quatro anos, na altura em que os chefes socialistas eram apenas o eco ou até o “microfone” das massas, mas hoje são uma entranhada e deliberada convicção dos seus autores. Terrificantes poderiam, ainda, parecer tais fórmulas por sugerirem uma reincidência ou uma recaída – fórmula que parece mais adequada dado o carácter “doentio” da lógica que lhes está subjacente. Na realidade, porém, julgo que a “suficiência” socialista é bem mais uma forma de “impotência”. Mesmo aquilo que nessa atitude há de antigo regime representa a fraqueza psicológica de um “enquistamento” ou de uma “transferência”, devidas ao enfrentamento prolongado e duro que com esse mesmo antigo regime tiveram de suportar. (...) É, também, por não ter projecto próprio e vivo que o PS precisa do da Constituição e da bênção que esta derrama sobre ele como partido ungido. (...)


(artigo no Diário de Notícias, 10 de setembro 1980)

sábado, 10 de maio de 2008

9 de Maio: dia santo ou revolucionário?


O 9 de Maio – dia da Europa – devia ser comemorado como uma revolução. Evoca a declaração de Schumann (um católico centrista, tipo santo revolucionário) na base de uma proposta de Monnet (o primeiro “gestor” moderno de conflitos interestaduais) que foi o “abre-te, sésamo” para o fim das guerras – e das revoluções! – na Europa ocidental. O carácter “último” desta revolução explicar-se-ia por, através dela, o homem comum, género consumidor sem fronteiras, ter começado a tomar o poder para lá da soberania e dos Estados.
Quarenta anos depois, a questão é, porém, a inversa. É a de saber como sair do quietismo conformista e mesmo alienador em que aquela revolução caiu. Por dentro, ela claudica quando o homem da rua, velha carne para canhão das guerras continentais, volta a sentir-se súbdito, agora de uma burocracia abstracta e longínqua (Bruxelas), em vez de ver prosseguido o processo emancipatório da cidadania europeia, até à plena consciência e domínio político do novo espaço.
Por fora, a evolução europeia vê-se ameaçada pelo “blitz” da globalização que ameaça reduzir a Europa a um “clone” da América, liquidando o seu ex-líbris – modelo social europeu – perante a impotência da sua outra glória – o Estado nacional – que, no entanto, resiste a partilhar poderes que já não pode exercer.
Claro que o balanço fora positivo. Não chega para estabelecer a paz na Jugoslávia ou a ordem na Albânia? Sim, mas também não deixou degenerar essas guerras civis em guerras europeias, como acontecera antes. Até evidenciou, por contraste, que tais “colapsos” só não ocorrem no seu perímetro, mesmo em países onde a crise e a desconfiança no Estado conheceram vertigens abissais, como na Bélgica ou na Itália.
Talvez por isso os países de Leste se esgadanham para entrar na UE. Os albaneses, perante o sumiço do Estado, lançam-se à água, na direcção do regaço pós-moderno das unidades políticas mais prevenidas. Como se o problema já não fosse guerras intra-europeias mas a pressão da mundialização. Nem fossem as erupções revolucionárias, mas o colapso dos poderes soberanos.
Claro que a moeda única também está à vista. Bastará ao tal homem da rua europeu para forjar uma consciência e um interesse comuns, daqueles que, além de portáteis, omnipresentes e gerais, não enganam. Gerará ainda uma declaração e contaminação globais, arrastando o sistema comunitário e agudizando a reivindicação da legitimação democrática sobre poderes do mercado e da técnica.
A União Monetária exigirá, assim, conquistas proporcionais em todas as esferas não monetárias ou políticas da UE (PESC e segurança interna). Delas dependerá a sua sustentação e consenso. Ou seja: a moeda única não será só uma conquista financeira. E será também a primeira amarra da irreversibilidade da construção e da sua nova cultura de estabilidade, segurança e durabilidade.
O problema, porém, está em saber se a Conferência Intergovernamental será já a senha para o séc. XXI. Será que, em vez de um Maastricht II, Amesterdão lançará a Construção Europeia II, na passagem à Europa Política e Larga? Será que nos conduzirá da incerteza da pós-modernidade para a linha recta da segunda modernidade?
Já é tarde para acreditar. No plano das opiniões públicas nacionais, a atitude reformista continua manietada entre a direita nostálgica do Estado Nacional e a esquerda situacionista do Estado Providência. Ambos prisioneiros da impotência recíproca! As forças reformistas ainda não são tão fortes que rompam esse bloqueio. No plano comunitário, a opinião pública quase não existe e o mecanismo das decisões fundamentais é do “velho testamento”, quando a profecia bastava. No tempo da guerra fria, os Tratados congelaram e a Europa rodava por si, com o mundo parado à volta. Na última década vamos, porém, na terceira revisão. E tudo indica que não vai chegar, como a máquina a vapor não chegaria para a era pós-industrial.
O método da mudança torna-se mais lento enquanto o mundo vai mais rápido. Até chegar à história do quinto marido de Elizabeth Taylor, que inquirido sobre a lua-de-mel, declarou não prever nada de novo... Afinal, se o barco mal passou o Bojador com 12 como passará as Tormentas com 15? Por essas e por outras se banalizou a ideia de outra CIG à boleia da moeda única.
Já não é mau que todos façam o seu melhor, como Kohl ao anunciar a sua recandidatura. A presidência holandesa, avisada desde Maastricht, faz uma arrebatada “percée” voluntarista e adianta um projecto de Tratado. Chirac antecipa as eleições gerais (Maio-Junho) para assinar o novo Tratado sem tremedeiras de mão, talvez economizando um referendo, como De Gaulle, a outro propósito, em 1968, “et pour cause”... E haverá os jantares de “sandwiches” que Cavaco Silva considerava o “doping” por excelência do último quarto de hora negocial.
Sobretudo novo alento sopraria sobre o Atlântico. Quando o eixo continental (Paris-Bona) esmorece, a esperança volta com o último barco da nova outra margem (Inglaterra)! Embora Blair não se comprometa, o pêndulo é fatal no seu movimento. Nem nenhuma hipótese sobre uma “entente” podia ser pior que a anterior. Ironicamente, augura-se aos trabalhistas o melhor de dois conservadorismos: o de Thatcher na economia e de Edward Heath na política externa, para fazer do seu país uma potência de “governo” e não de “oposição” europeia.
Se assim for, podemos ter um resultado à Acto único Europeu ou até à Maastricht: decepcionante no imediato, mas a eficaz a prazo. Como o filho que dizia que o pai era estúpido mas uma década depois já o achava muito inteligente... A diferença é que já não se pesquisarão as pepitas no filão da eficácia (Acto Único) ou da estabilização monetária (Maastricht), mas no plano simétrico da segurança interna (3º pilar). A democratização política ficará para depois, à espera que os jovens europeus cresçam. Não é, pois, com a actual CIG que chegará a segunda modernidade europeia. E, por este andar, o 9 de Maio passará de revolucionário a dia santo. Pode prosseguir a evolução na continuidade. Afinal a Europa já não é um sonho mas uma necessidade. Só se a CIG não chegar para manter as duas rodas da bicicleta de pé, é natural que muitos se dêem à maçada da ratificação. E outros poderão avançar separadamente, num corredor duplamente revolucionário, para lá de Monnet e Schumann, a caminho de outros métodos e objectivos, os primeiros mais democráticos e os segundos mais políticos. E então, como em todas as revoluções, quem lá não estiver que não se queixe...


(artigo no Expresso, 3 de maio 1997)

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Futebol e Poder Local



O dia 1 de Agosto é a data limite para as decisões sobre o novo regime das sociedades desportivas. Vários problemas subsistem porém a curto prazo além de outros mais permanentes sobre a nova lei. No primeiro plano, o dr. José Manuel Meirim, por exemplo, já defendeu com brio a inconstitucionalidade das regras sobre a responsabilidade dos dirigentes desportivos, tão completamente alheias são elas à noção de culpa. Por outro lado, a Liga pensa que a necessidade de prestação de caução (10% dos respectivos orçamentos) só valeria para a próxima época desportiva, o que, como notou o dr. Fernando Seara, rompe a coerência do dispositivo responsabilizador no seu conjunto. O pós-1 de Agosto está assim entre esvaziamento, adiamento e o aquecimento próprio da época...
Num plano mais geral, eu próprio já tenho chamado a atenção para os problemas estruturais de longo prazo do que, para empregar a expressão do ministro Jorge Coelho a outro propósito, pode ser considerado uma "caldeirada" do clubismo clássico, comunitarismo municipalista e capitalismo populista, numa convivência que não se afigura fácil. Em concreto, um dos riscos principais é o da interpenetração câmaras-clubes, com os deslizes que se imaginam. No limite não estaria excluído que os clubes começassem a apresentar candidatos às câmaras e vice-versa. Sobretudo quando começar a possibilidade de listas de independentes no Poder Local. Até porque os clubes são os principais animadores das sociedades civis locais, e tenderão, face à lei a constituir-se, como os mais poderosos grupos de influência.
A verdade é que já toda a gente percebeu a importância do futebol na vida local. No seu primeiro e prometedor comício como candidato à Câmara Municipal da Figueira da Foz, Santana Lopes anunciou como um dos pontos da sua agenda política — um dos mais destacados pelos jornais — a subida da Naval 1º de Maio à I Divisão. Preveniu ao mesmo tempo que não usará a estratégia que na Madeira recentemente fora contestada para a reorganização do futebol regional. Felizmente, Santana Lopes, cuja simultânea experiência no domínio político e desportivo é difícil de igualar, poderá usar tais mecanismos com perícia. A ideia em si mesma está, porém, à disposição de todos os outros candidatos pelo país fora e é fácil, por exemplo, imaginar o que aconteceria no Porto se Pinto da Costa não tivesse em Fernando Gomes um seu aliado.
É, de resto, para lá dos grandes centros que a utilização política do futebol e a recíproca utilização futebolística das câmaras são mais prováveis. Todos sabem que o futebol é uma das formas de pôr certas terras no mapa, como, aliás, estatísticas e sondagens de vários tipos têm demonstrado, e se torna uma exigência quando a visibilidade é a mais óbvia condição de atractividade em que todos apostam. É por isso que se pode imaginar que, ao lado da dimensão político-jurídica europeia (caso Bosman) e nacional (totonegócio, etc...) o futebol se desenvolverá cada vez mais numa dimensão regional e local que a nova lei vem acicatar. A agenda Santana Lopes pode neste plano ter um sentido bandeirante... E não apenas no sentido oposto. Mas também no de o sul assim querer abrir uma frente ao centro, para melhor se equilibrar a hegemonia desportiva do norte...

(Crónica no jornal "O Jogo" de Sábado, 12 de Julho de 1997)