segunda-feira, 11 de maio de 2009

Constituição ou constitucionalização?

"É curioso notar como as forças revolucionárias que antes insistiam tanto na noção de processo político, tendo chegado a celebrizar a noção de processo revolucionário em curso, mais tarde trocaram completamente essa noção, dinâmica por excelência, pela noção burguesa de "Constituição", aliás interpretada rigidamente. É como se o processo político, antes infinitamente acelerado e desperto, tivesse parado de súbito, ainda por cima de maneira quase completa e definitiva.
Curiosamente também são as forças mais liberais e, em circunstâncias normais, mais constitucionalistas, que vêm reavivar o conceito de processo político, com propostas como, por exemplo, a de referendum e, sobretudo, através de uma exigência de interpretação mais historicista e mais dinâmica da Constituição, que valoriza mais o movimento da sociedade e a sua liberdade do que a fixidez do Estado e o autoritarismo normativo.
É evidente que uma transferência de visões traduz em política, em princípio uma transferência de posições. Tal transferência gerou, porém alguns equívocos para lá da política. Por exemplo, alguns juristas muito burgueses e liberais, educados na respeitabilidade da letra jurídica, mas com uma grande dose de inocência política, tornaram-se aliados dos "revolucionários", agora convertidos ao "constitucionalismo", só porque ele era burguês na forma e sem embargo de ser revolucionário no conteúdo. Fazia-se assim um acordo entre a "cassete revolucionária" e a "cassete académica", embora no primeiro caso de tratasse de maquiavelismo e, no segundo, de candura, a mesma candura com que alguns desses mesmos juristas tinham aceitado o direito constitucional da Ditadura.
Para os enfermos desta candura o documento "Constituição" é tudo. Basta-lhe o nome de baptismo. Tudo o resto, é despiciendo. Considerações sobre a origem e a função desse texto são supérfluas. Considerações sobre a legitimidade, de um lado, e a realidade ou eficácia da Constituição seriam igualmente néscias, mesmo quando umas eleições — as de 2 de Dezembro —tivessem sido feitas vitoriosamente contra o espírito de tal constituição e contra o que ela representava. O cortejo das letras constitucionais seguiria, pois, impávido, com o seu séquito de explicadores e defensores atrás, quase sem outro significado além do académico e conselheiral. A realidade faria a figura de um terceiro como se diz nas alegações jurídicas.
Mesmo para aqueles que se alegam facilmente à superfície, como que agarrados por uma cola, por preguiça ou incapacidade de ir mais além, há observações elementares. Por exemplo: é ou não esta Constituição uma Constituição de transição e há ou não uma contradição entre transição e rigidismo? Por exemplo: é ou não verdade que a correlação de forças que esteve na origem desta Constituição (PC-PS-PSD) se alterou constantemente a partir da sua feitura (PS-PSD-CDS) na eleição presidencial e, depois PSD-CDS na segunda eleição legislativa e tem sentido qualitativo diferente e, até, oposto ao inicial pois que um acto principal de maioria constitucional (o PCP) desaparece em todas as maiorias seguintes? É ou não verdade que, já desde a entrada em vigor da Constituição, vem ocorrendo "uma sucessão ininterrupta de crises", dando origem a soluções diversas, traduzindo uma procura, uma tentativa de acerto e uma evolução tácita das próprias normas através de soluções extraídas da realidade, resultantes de acordos ou não e não colhidas directamente na Constituição? É ou não verdade que se continua a verificar um desequilíbrio político institucional em Portugal e a ter a sensação de um modelo político em evolução e por determinar em aspectos essenciais? É ou não verdade que a formação de uma maioria estável em 2 de Dezembro alterou, na prática, as regras de funcionamento do próprio regime e que, em qualquer democracia constitucional a vontade da maioria deve intervir como factor de interpretação da Constituição ou como seu limite, sob pena de tal interpretação ter carácter autoritário? É ou não verdade que ainda não entrámos na via larga do nosso futuro, ordenado e estável, constitucional, pois, no sentido pré e extra-jurídico que a expressão "constitucional" também tem?
As perguntas deste tipo podiam suceder-se. Não deixa de ser também espantoso o facto de serem os principais partidários especialistas e praticantes da violência e da agitação (o PCP por exemplo), "competência" que, aliás, se empenharam em demonstrar antes do 25 de Novembro, que agora são os mais "ferozes" legalistas.
A ferocidade é, talvez, a mesma e o espírito de ditadura, não se serve às vezes, menos da ditadura da lei que de outras formas.
Aos incautos lentes burgueses da Constituição que se comportam como se "leitores" e "leitura" fossem entes abstractos, seria bom lembrar que quando se fala de defender a Constituição é preciso responder antes a essa outra questão: qual Constituição? A racionalidade nunca é cega por definição e, talvez, no caso concreto, a sua normal inquietação pudesse exprimir-se desta forma: defender o quê nesta Constituição? Isto é: qual o princípio supremo da nossa Constituição, aquele que lhe dá a unidade de sentido: o princípio do socialismo ou da maioria? É ou não verdade que a função primordial de Constituição é a de unidade? Ao fim e ao cabo é ou não verdade que o juridismo puro e formal era um dos principais esteios do regime caído em 25 de Abril? É ou não verdade que é a Constituição que existe para a Democracia e não a Democracia para a Constituição? Exige ou não a interpretação da Constituição este pressuposto de racionalidade — o justificar-se, apenas, por e para a Democracia — sob pena daquilo que se chama o suicídio da racionalidade democrática?
Originária ou historicamente, a Constituição representou o contrato, contra o estatuto e é preciso pensá-la em termos de contrato, isto é de relação e adequação constante de vontades e interesses mutantes. A Constituição democrática é sempre, nalguma medida, e hoje mais do que nunca, mais um resultado do que um princípio. A sociedade democrática está antes do Estado socialista ou outro e deve ser determinante — não determinado. Aquela é que determina o Estado e os seus códigos. Pensar ao contrário é apenas a persistência do mito do Estado Novo, agora apenas socialista, em vez de corporativo, mas em qualquer caso igualmente conservador e juridista... Será que mentalmente ainda não saímos tanto desse Estado Novo como parecia?
Não haja, porém, ilusões. Quando a Constituição é, por vezes, o único argumento, é muito mau sinal. É que a lei não pode ser nunca o único argumento, por isso mesmo que o direito não é uma racionalidade separatista e misógena, ou até hermafrodítica. O legalismo puro é um sinal de decadência. E, de facto, toda a gente sabe que o processo político vai continuar e desenvolver-se através das eleições do Outono e do Inverno próximos. Os "constitutocratas" de esquerda e de direita sabem-no bem. Arrimam-se à Constituição sim, mas, também, quando não são inocentes, como argumento eleitoral do seu próprio poder, ou de "juristas" ou de "revolucionários". Não confiam, porém, que toda a solução esteja nessa Constituição e sabem muito bem que se perderem as próximas eleições, perderão, também, mais cedo ou mais tarde, essa menina dos seus olhos...
O processo político vai continuar, pois, apesar da Constituição actual. Não era o PCP que dizia "a luta continua"? Agora já não será "o processo revolucionário em curso"! Agora a luta é conduzida pelas forças democráticas e justamente, em grande parte, contra o PCP, em vista da estabilização permanente da vida democrática portuguesa. É o processo democrático de constitucionalização da vida política portuguesa que está, agora, em curso."

Comércio do Porto de 18 de Junho de 1980