quarta-feira, 17 de junho de 2009

Envelope sem Carta



Na minha colaboração da semana passada dizia-se que o poder em Portugal tem sido sempre muito mais familiar e muito mais inculto – pelo menos do ponto de vista político – do que é normal. Acrescentava-se, por sua vez, que a cultura portuguesa fora sempre uma das mais literárias e apolíticas (ou despolitizadas) do mundo ocidental.
São juízos que o próprio 25 de Abril talvez possa comprovar de maneira nítida. No processo político que nessa data teve origem parece verificar-se, de facto, a conjugação de uma série de actos e problemas militares, por um lado, com várias e mais ou menos inspiradas declarações literárias, por outro. De um lado constata-se quer a abundância de programas políticos, planos económicos, seminários de estudo, debates, “documentos”, comentários, proclamações e análises, quer a constância, a premência e a importância das questões político-militares. Do outro lado, ao contrário, pode ver-se, porém, a falta de um equilíbrio político consolidado, a falta de objectivos políticos maioritários e a falta de resultados económicos minimamente satisfatórios. De um lado temos, pois, uma revolução muito literária e muito militar; do outro, uma revolução pouco económica e pouco culta, no sentido político da expressão.
Vê-se que faltam as obras de que nos é devedora a economia política. Vê-se que faltam a direcção e a estabilidade que é costume exigir da função constitucional. Falta, em suma, o conteúdo, isto é, os decididos padrões éticos, económicos, culturais, e até estéticos, que costumam ser apanágio de qualquer revolução. Como se tudo fora uma esgrima de espadas (nos momentos de crise) ou de palavras (nos momentos de rotina revolucionária). Como se tratasse de um teatro especial em que os gestos são feitos por actores militares e as palavras são ditos por actores civis – afinal, não em dois teatros opostos mas num teatro único, onde há, porém, um recíproco complemente de papéis. Dá a ideia que já foi escrito o envelope da Revolução – mas falta, ainda, escrever a carta.
É que, também, o 25 de Abril não tinha nessa data exacta um claro projecto político e económico. Era sobretudo a junção de um “tiro de misericórdia” militar no regime deposto, com um primeiro “Programa” – espécie de edital de Revolução – a abrir, aliás, a série de programas que depois se publicariam. O próprio “Programa”, porém, pelo apagado e ambíguo destino que teve, vê-se que foi mais uma segunda ideia e uma ideia incidental, do que a essência e o cerne do projecto revolucionário ele mesmo.
Não é, aliás, por acaso, embora seja talvez sem querer, que a Revolução que vivemos é conhecida mais pela sua data do que pela sua marca. É isso que acontece, em geral, com os acontecimentos retumbantes que, um dia qualquer, irrompem História adentro, mas sobre os quais apenas se fica a saber de imediato que abrem uma nova era – salvífica porventura – mas a respeito dos quais tudo o que, além disso, conste é, desde logo, perecível e confuso, ou está, pelo menos, sujeito a uma disputa inacabada, ou a uma verificação ulterior.
Uma nova era, sem dúvida! Mas uma nova era de quê, uma nova era de quem? O 25 de Abril é esta mesma pergunta, muito mais do que uma qualquer resposta. O seu significado imediato foi, sobretudo, de ruptura. Simbolicamente foi uma queda – a queda de um regime sentado. O 25 de Abril vem a ser, afinal, a queda multiplicada e em série desse regime sentado que fora o salazarismo. No 25 de Abril, a queda alastra do forte do Estoril pelo País fora, atingindo a profundidade e o âmago de Portugal, até para lá dele próprio, onde houvesse uma raíz ou só uma folha desta velha árvore que Portugal é.
É por isto mesmo que é preciso remontar mais atrás. É preciso remontar ao momento em que o tombo da “primeira cadeira” (aliás, rigorosamente também cátedra no caso em apreço) provocou a lesão fatal na cabeça do regime, a partir de então definitivamente estonteado. Para termos uma visão integrada e histórica do que hoje se passa, temos, pois, que repescar esse acidente como o momento em que a areia da Revolução começa a cair na ampulheta da contagem decrescente. O verdadeiro P.R.E.C., e todo o processo de negação e partilha que ele representa, estende-se até lá. Inclusivamente do ponto de vista da Oposição ou, hoje, da maioria de esquerda, é então, em 1969, que começa o trajecto bifurcado, embora paralelo e chegado, entre comunistas e socialistas. É também então que a ala liberal, hoje social-democrata, se emancipa do regime. É então que outros grupos, outras conotações e outras personalidades aprendem o seu lugar no futuro. De resto, muita gente da classe política actual fez a sua “escola primária” no meio de “bunker” ou do “establishment” marcelista. É curioso, aliás, como no Largo do Carmo, Marcelo Caetano quis trespassar o poder ao general Spínola.
O próprio marcelismo, de resto, não seria nada de autónomo. Forneceria apenas o primeiro campo de afrontamento, um primeiro tempo de passagem, espera e preparação. De certo modo, nele se entreabre a porta de um período de revolução-queda. Queda no sentido em que há a sensação de se ter caído da tal cadeira, de onde se contemplava a História, na própria História que é agora quem nos contempla e a quem nós interrogamos. Queda na História quase como uma criança que não pode aprender a nada, cai à água, e, apesar das bóias, parece que vai se afundando, embora, talvez, porque só na profundidade possa encontrar a força para emergir.
Durante o período marcelista e até ao 25 de Abril, houve um processo de deterioração. Depois houve um processo de negação e erradicação de todos os vestígios da ditadura. Foi, por isso, por excelência a época do antifascismo, de que, porventura, “a lei das organizações fascistas” é o último estertor já póstumo. De certo modo, pode-se admitir, em teoria e imageticamente, que uma certa corporação anticorporativa, mas produzida pelo próprio corporativismo, podia então ter edificado um corporativismo ao contrário. Foi então, de facto, que se geraram e desenvolveram quer um “salazarismo ao contrário”, quer um “marcelismo ao contrário”, este último, de resto, ainda hoje a estrebuchar. Ambos quiseram reproduzir formas já antigas de (in)cultura política, embora camufladas, agora, com outras siglas e cores, segundo a proveitosa consigna “non nova sed nove”. E é até curioso notar como o fracasso deste marcelismo ao contrário permite, por sua vez, renovar, outra vez, em segunda edição, o êxito da velha ala liberal, também ela agora colocada ideologicamente, pelo menos, de um outro lado… ou mesmo outra galáxia ou contexto político.
Há, porém, sinais de esperança, de resto proporcionais aos de ansiedade. É hoje, curiosamente, que começa a rever-se toda a distribuição política, toda a topografia de grupos e personalidades que se fizera em 1969, nesse diferido início do P.R.E.C.. É que à Revolução-queda parece começar a substituir-se uma Revolução-projecto, virada para a construção de uma democracia nova e não apenas para o enterro de um regime morto em 1969, embora apenas sepultado em 1974 e sobrevivente como fantasma até mais tarde. A capacidade de direcção começa a valorizar-se sobre a vocação de luta. As obras começam a ter mais eco do que as palavras. Começa a forjar-se a vontade suficiente para vencer as batalhas ainda pendentes.
Uma coisa é certa: lançados à água, não podemos sair, nem sabemos se haverá quem nos empreste mais bóias e é por isso que não há outro remédio senão aprender a nadar… já.
(in "O Primeiro de Janeiro" de 4 de Novembro de 1978)

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Constituição ou constitucionalização?

"É curioso notar como as forças revolucionárias que antes insistiam tanto na noção de processo político, tendo chegado a celebrizar a noção de processo revolucionário em curso, mais tarde trocaram completamente essa noção, dinâmica por excelência, pela noção burguesa de "Constituição", aliás interpretada rigidamente. É como se o processo político, antes infinitamente acelerado e desperto, tivesse parado de súbito, ainda por cima de maneira quase completa e definitiva.
Curiosamente também são as forças mais liberais e, em circunstâncias normais, mais constitucionalistas, que vêm reavivar o conceito de processo político, com propostas como, por exemplo, a de referendum e, sobretudo, através de uma exigência de interpretação mais historicista e mais dinâmica da Constituição, que valoriza mais o movimento da sociedade e a sua liberdade do que a fixidez do Estado e o autoritarismo normativo.
É evidente que uma transferência de visões traduz em política, em princípio uma transferência de posições. Tal transferência gerou, porém alguns equívocos para lá da política. Por exemplo, alguns juristas muito burgueses e liberais, educados na respeitabilidade da letra jurídica, mas com uma grande dose de inocência política, tornaram-se aliados dos "revolucionários", agora convertidos ao "constitucionalismo", só porque ele era burguês na forma e sem embargo de ser revolucionário no conteúdo. Fazia-se assim um acordo entre a "cassete revolucionária" e a "cassete académica", embora no primeiro caso de tratasse de maquiavelismo e, no segundo, de candura, a mesma candura com que alguns desses mesmos juristas tinham aceitado o direito constitucional da Ditadura.
Para os enfermos desta candura o documento "Constituição" é tudo. Basta-lhe o nome de baptismo. Tudo o resto, é despiciendo. Considerações sobre a origem e a função desse texto são supérfluas. Considerações sobre a legitimidade, de um lado, e a realidade ou eficácia da Constituição seriam igualmente néscias, mesmo quando umas eleições — as de 2 de Dezembro —tivessem sido feitas vitoriosamente contra o espírito de tal constituição e contra o que ela representava. O cortejo das letras constitucionais seguiria, pois, impávido, com o seu séquito de explicadores e defensores atrás, quase sem outro significado além do académico e conselheiral. A realidade faria a figura de um terceiro como se diz nas alegações jurídicas.
Mesmo para aqueles que se alegam facilmente à superfície, como que agarrados por uma cola, por preguiça ou incapacidade de ir mais além, há observações elementares. Por exemplo: é ou não esta Constituição uma Constituição de transição e há ou não uma contradição entre transição e rigidismo? Por exemplo: é ou não verdade que a correlação de forças que esteve na origem desta Constituição (PC-PS-PSD) se alterou constantemente a partir da sua feitura (PS-PSD-CDS) na eleição presidencial e, depois PSD-CDS na segunda eleição legislativa e tem sentido qualitativo diferente e, até, oposto ao inicial pois que um acto principal de maioria constitucional (o PCP) desaparece em todas as maiorias seguintes? É ou não verdade que, já desde a entrada em vigor da Constituição, vem ocorrendo "uma sucessão ininterrupta de crises", dando origem a soluções diversas, traduzindo uma procura, uma tentativa de acerto e uma evolução tácita das próprias normas através de soluções extraídas da realidade, resultantes de acordos ou não e não colhidas directamente na Constituição? É ou não verdade que se continua a verificar um desequilíbrio político institucional em Portugal e a ter a sensação de um modelo político em evolução e por determinar em aspectos essenciais? É ou não verdade que a formação de uma maioria estável em 2 de Dezembro alterou, na prática, as regras de funcionamento do próprio regime e que, em qualquer democracia constitucional a vontade da maioria deve intervir como factor de interpretação da Constituição ou como seu limite, sob pena de tal interpretação ter carácter autoritário? É ou não verdade que ainda não entrámos na via larga do nosso futuro, ordenado e estável, constitucional, pois, no sentido pré e extra-jurídico que a expressão "constitucional" também tem?
As perguntas deste tipo podiam suceder-se. Não deixa de ser também espantoso o facto de serem os principais partidários especialistas e praticantes da violência e da agitação (o PCP por exemplo), "competência" que, aliás, se empenharam em demonstrar antes do 25 de Novembro, que agora são os mais "ferozes" legalistas.
A ferocidade é, talvez, a mesma e o espírito de ditadura, não se serve às vezes, menos da ditadura da lei que de outras formas.
Aos incautos lentes burgueses da Constituição que se comportam como se "leitores" e "leitura" fossem entes abstractos, seria bom lembrar que quando se fala de defender a Constituição é preciso responder antes a essa outra questão: qual Constituição? A racionalidade nunca é cega por definição e, talvez, no caso concreto, a sua normal inquietação pudesse exprimir-se desta forma: defender o quê nesta Constituição? Isto é: qual o princípio supremo da nossa Constituição, aquele que lhe dá a unidade de sentido: o princípio do socialismo ou da maioria? É ou não verdade que a função primordial de Constituição é a de unidade? Ao fim e ao cabo é ou não verdade que o juridismo puro e formal era um dos principais esteios do regime caído em 25 de Abril? É ou não verdade que é a Constituição que existe para a Democracia e não a Democracia para a Constituição? Exige ou não a interpretação da Constituição este pressuposto de racionalidade — o justificar-se, apenas, por e para a Democracia — sob pena daquilo que se chama o suicídio da racionalidade democrática?
Originária ou historicamente, a Constituição representou o contrato, contra o estatuto e é preciso pensá-la em termos de contrato, isto é de relação e adequação constante de vontades e interesses mutantes. A Constituição democrática é sempre, nalguma medida, e hoje mais do que nunca, mais um resultado do que um princípio. A sociedade democrática está antes do Estado socialista ou outro e deve ser determinante — não determinado. Aquela é que determina o Estado e os seus códigos. Pensar ao contrário é apenas a persistência do mito do Estado Novo, agora apenas socialista, em vez de corporativo, mas em qualquer caso igualmente conservador e juridista... Será que mentalmente ainda não saímos tanto desse Estado Novo como parecia?
Não haja, porém, ilusões. Quando a Constituição é, por vezes, o único argumento, é muito mau sinal. É que a lei não pode ser nunca o único argumento, por isso mesmo que o direito não é uma racionalidade separatista e misógena, ou até hermafrodítica. O legalismo puro é um sinal de decadência. E, de facto, toda a gente sabe que o processo político vai continuar e desenvolver-se através das eleições do Outono e do Inverno próximos. Os "constitutocratas" de esquerda e de direita sabem-no bem. Arrimam-se à Constituição sim, mas, também, quando não são inocentes, como argumento eleitoral do seu próprio poder, ou de "juristas" ou de "revolucionários". Não confiam, porém, que toda a solução esteja nessa Constituição e sabem muito bem que se perderem as próximas eleições, perderão, também, mais cedo ou mais tarde, essa menina dos seus olhos...
O processo político vai continuar, pois, apesar da Constituição actual. Não era o PCP que dizia "a luta continua"? Agora já não será "o processo revolucionário em curso"! Agora a luta é conduzida pelas forças democráticas e justamente, em grande parte, contra o PCP, em vista da estabilização permanente da vida democrática portuguesa. É o processo democrático de constitucionalização da vida política portuguesa que está, agora, em curso."

Comércio do Porto de 18 de Junho de 1980

segunda-feira, 30 de março de 2009

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Debates Parlamentares: emigração e Negócios Estrangeiros (1976)

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Lucas Pires, tenha a bondade.
O Sr. Lucas Pires (CDS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A discussão tem-se arrastado um tanto, tem sido um bocado birrenta, e eu não sei se a minha intervenção ainda servirá para convencer, porque as pessoas estão já desanimadas por certos complexos nervosos, de pressa, nomeadamente.
Em todo o caso, o equívoco que está aqui presente parece-me de tal modo grave que eu atrevo-me a intervir. Efectivamente, parece-me um conúbio, de todo espúrio, que pode parir monstruosidades, este da emigração com os Negócios Estrangeiros. É que a mim dá-me a ideia, e parece-me isso uma evidência apodítica, que a política da emigração se faz cá, neste país, antes de os emigrantes partirem, e que partir de outro ponto de vista é desnacionalizar implicitamente esses nossos compatriotas. Partir da ideia de que essa política se faz através de terceiros Estados é efectivamente confiar esses emigrantes à exploração capitalista desses Estados (risos), atitude tão reprovada por parte da esquerda, e dos socialistas nomeadamente.
Manifestações de desagrado do PS.
Por outro lado, há aqui também, digamos, algumas incompatibilidades ou atropelos lógicos evidentes. É evidente que, a política dos Negócios Estrangeiros é uma política de relação entre entidades abstractas chamadas Estados. A política da emigração é uma política de relação entre uma entidade que se chama Estado e certas pessoas concretas, humanamente identificáveis, com certo estatuto social. É portanto, uma política com todas as conotações. E isto é tanto mais grave quanto mais a política externa se torna hoje abstracta, mundialista, interpretação de relações de força, sem qualquer dimensão proporcionada para o homem. A política da emigração, essa, deve ser, do nosso ponto de vista, personalista, crescentemente uma política proporcionada para o homem. (...)
É que nós não devemos partir da perspectiva com que o Estado trata os problemas, mas da perspectiva com que os interessados sentem os problemas. Nós somos os representantes da sociedade perante o Estado e não os representantes do Estado perante a sociedade. Nós somos os representantes do povo e não os funcionários do Estado ou os agentes do Ministério dos Negócios Estrangeiros perante a sociedade. Era isto que eu tinha a dizer.

(23 de Julho 1976 Diário da Assembleia da República nº 12, p. 274 e 275)

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Para uma sociedade aberta no ano 2000


Pela nossa parte, porém, somos tão optimistas e persistentes como até aqui, mesmo que a possibilidade existente seja quase a da “última hora” – uma daquelas, afinal, em que, segundo parece, os portugueses melhor agem. Além do mais, temos condições culturais, sociais, territoriais, geoestratégicas e climatéricas para vir a ser no ano 2000 um centro privilegiado de instalação de certas elites e tipos avançados de empresas europeias, com maior grau de mobilidade e carácter criativo. O mesmo processo de deslocação para as zonas costeiras e ambientalmente mais favoráveis ocorreu numa fase recente do desenvolvimento americano. Uma sociedade aberta deve também aspirar a ser uma sociedade “de primeira”, num país que, sendo ainda o mais pobre, é também o mais antigo sucesso de independência, aventura e criatividade política do continente europeu.
O nosso optimismo tem igualmente a ver com uma tradição que agora se celebra por remontar aos Descobrimentos – a de uma cultura aberta, tolerante e imaginativa. Temos mesmo a oportunidade de encerrar o longo processo de decadência e obscuridade que se sucedeu ao nosso “século de oiro”, porque a medida do nosso desafio estimula energias que estão ainda no fundo de nós e são vitais para sair outra vez de uma situação de periferia e mera integração pelo exterior. A situação não nos deixa, aliás, muitas alternativas de actuação e pode servir de “picador” contra um costumado auto-abandono às soluções apenas intermédias. A nova “segunda fronteira” portuguesa – a da Europa – é, aliás, a da pátria da lógica e da razão sistemática, o que, finalmente, também confluirá para superar as contradições insanáveis, as hesitações e as resistências obscurantistas que têm impedido o pleno desabrochamento português.
Foi nesta perspectiva e nesta hora que nos continua a dar razão que pareceu útil recuperar um documento como o do Programa para uma Nova Década assim chamando o ânimo e a inteligência de uma das primeiras tentativas orientadas na direcção de uma “sociedade aberta”, para o nosso país no ano 2000. Alguns dirão a propósito que estamos de novo a pedir de mais. Nós julgamos estar a querer apenas o essencial, com um realismo que pode ser antecipado, mas apenas para recuperar o tempo perdido e a rapidez das mutações em curso. Sabemos que já se esteve mais longe de o entender assim. E como nem todos se podem sentar nas mesmas cadeiras do Poder, ninguém negará, por fim, que ir à frente e querer mais é, também, uma parte da oportunidade em Democracia – oportunidade pelo respeito e êxito da qual passa, igualmente, a modernização da nossa cultura política.

(prefácio de “Objectivo 92 – No Caminho da Sociedade Aberta”, Grupo de Ofir, 1988, p. 19 e 20)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Uma Constituição para Portugal (II)


1

Ao princípio não “era” o Estado mas o Homem – “era” o Homem, o espírito e o barro... É esta uma verdade em função da qual será o Estado a ter de se humanizar – não o Homem quem tem de se estadualizar...
Se assim for, a questão política número um – constitucional, por excelência – não é a de saber – qual deve ser o Estado? – mas esta outra – Que homem e que tipo e formas exteriores de humanidade queremos e podemos exprimir e realizar através da ordem política?
A questão do Estado não poderá ficar por responder mas tornar-se-á dependente. Consistirá tão-só em apurar – Qual o Estado que permite a esse homem sê-lo, o mais completamente que é possível?

a) Zarpar deste porto e com este rumo é a primeira condição para sair da galáxia do sub-desenvolvimento político.
Reina nesse mundo sediço uma crença apriorística no Estado – ora como sujeito, ora como objecto – sempre transcendente, tornando-se, em qualquer dos casos, causa virtual de idolatria ou, no reverso, de inumanidade.
As raízes da crença aludida podem, de facto, ter duas origens: em primeiro lugar, a contemplação do Estado como uma pessoa ideal, que só se avista ao longe, qual alma penada terrificante, mas que ao perto é apenas o vácuo “embalsamado” em formas jurídicas – concepção idealista (liberal); em segundo lugar, a consideração do Estado como um objecto real, não só objectivo, como posto até contra as pessoas, produzido como detrito das convulsões dialécticas de uma História, por sua vez também, integristicamente objectiva – concepção materialista (anti-liberal).
Quer a primeira sereia, quer o segundo oráculo, têm de “providencializar” o Estado e reclamar, a “ferro e fogo”, a sua “soberania” – de pessoa jurídica, num caso, ou de facto material no outro, a ideia suprema ou o destino irrecorrível, respectivamente. Fundamento e predestinação de Estados basicamente voltados para a luta, a conquista ou a guerra – de defesa ou de agressão – essas teorias comportam, tanto quanto alimentam, um enorme potencial de poder absoluto.
Pôr a soberania como o axioma político da Constituição é, implicitamente, pôr a sujeição do homem antes da auto-determinação do homem – ou considerar a liberdade apenas uma excepção à obediência. Em qualquer dos casos, se a soberania prudentemente mantida de reserva, se torna possessa ou renitente, o mais que nesse contexto se poderia locubrar seria o exorcismo dos velhos “demónios” para aplanar a descida de novos “anjos”... igualmente soberanos... renovando a perpetuação do erro.
Para qualquer das “ideologias” aludidas – negativo e positivo de uma mesma cultura – o Homem é como um retardatário, encontrado contra vontade, de vez em quando e à última hora, isto é – apenas como limite do Estado. O máximo de esforço que essas propostas são capazes de fazer pelo Homem é uma esmola: pedir ao Estado que consinta em ser melhor na “sua” moral (mais humano) ou menor na “sua” extensão (menos desumano).

b) A alternativa que se opõe e supera tais “visões” políticas pressupõe uma “viragem copernicana” na consideração da ordem política. Isto é: a instituição do Homem como centro de gravitação política, reservando aos reais factores constitutivos do Humano a precedência que as culturas políticas “conservadoras” reservavam ao Estado e à sua Constituição.
Se se quiser acabar com o medo como problema político, é pelo Homem e não pelo Estado que tem de se começar. O medo é, de facto, o peso e a sombra de um ente estranho e sobre-humano que nos ladeia e espreita desde a nascença. Ora a verdade é que o Estado só existe depois de pensado, só depois de nós. (...)

("Uma Constituição para Portugal", Coimbra, 1975, p.4-5)

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Regionalização e Europa



A consideração do fenómeno regional na construção europeia passou por várias fases. Podemos destrinçar pelo menos três: a dos anos setenta em que as regiões não existem nos Tratados; a da nova política regional dos anos oitenta até aos anos noventa, em que a política é concebida apenas de acordo com o factor territorial e o factor económico; e a posterior aos anos noventa, com o Tratado de Maastricht nomeadamente, em que as regiões são adoptadas ou integradas na política comunitária, como um factor político e institucional, ainda que modesto, já não apenas como um factor económico e territorial.
E se é duvidoso que a CIG-96 venha já a abrir um novo ciclo neste domínio, travado não só pelo retorno do intergovernamentalismo, como, sobretudo, pela sombra de outras prioridades, a evolução do fenómeno regionalizador continua a enfunar as suas velas. Para muitos, a Europa ofereceria hoje, até, uma espécie de quadro “neo-medieval” em que se progride no topo em termos de uma maior unidade e centralidade política, qual versão democrática dos tempos do Papa e do Imperador, enquanto na base cresce um pluralismo de entidades intermédias, como as Regiões.
Este último escalão permitiria satisfazer, ao mesmo tempo, objectivos da “nova democracia” e do “novo desenvolvimento”, ambos mais próximos, respectivamente, da vontade e das necessidades dos cidadãos. A “ferramenta” institucional da democracia será cada vez mais precisa à defesa da identidade, formas de coesão e estratégias, construídas e afirmadas, subsidiariamente, de baixo para cima e do particular para o geral.
Por um lado, o instrumental jurídico-institucional é hoje considerado prioritário a todos os níveis de desenvolvimento. As debilidades competitivas teriam, muitas vezes, origem mais na falta desses instrumentos de que na escassez de recursos. O direito e a democracia são, a todos os níveis, os primeiros e mais valiosos utensílios para a realização da ambição colectiva. É com eles que procuram equipar-se as “unidades geo-culturais” (P. Häberle) que são as regiões.
Por outro lado, tratar-se-ia de evitar novos absolutismos do geral, propiciados muitas vezes pelos hiatos da construção democrática. É por essa razão que estamos hoje não apenas perante um quadro social plural, mas pluralístico, para o qual o pluralismo já não é só uma realidade mas um valor positivo, activo e querido.
Além disso, é preciso assegurar um continuum entre o local e o global na defesa e promoção do desenvolvimento. Numa economia mundializada, as comunidades infraestatais com suficiente identidade cultural também não prescindem do espírito empresarial nem de vontade política própria. Carecem, por isso, de dimensão e autonomia para serem reconhecidas pelo mercado.
Entre o local e o mundial, a defesa e a comparticipação das várias formas de identidade organiza-se, assim, do modo mais homogéneo e horizontalizado. Por isso, as regiões voltam a procurar um lugar, sobretudo numa Europa onde a respectiva tradição lhes confere um suplemento de força e legitimidade.
A mundialização produz uma fragmentação atomista que ao nível social conduz ao individualismo. A regionalização, vista ela própria como ruptura, é afinal, neste novo cenário, uma forma de combater aquela forma extrema de desagregação dos laços sociais das comunidades intermédias e de estruturar, grau a grau, patamares de formação de unidade social.
Na reorganização das formas políticas que a internacionalização desafia, a regionalização avança, porém, como uma forma de aprendizagem institucional, por isso mesmo reformista, adaptativa e gradual. Tal adaptação tem de ter em conta, nomeadamente, o quadro externo, o qual não pode ser ignorado, neste como em qualquer outro problema político. Mais especificamente, mesmo quando o respectivo direito não é determinante ou imperativo a este propósito, será concerteza óbvio para todos que a União Europeia é a mais relevante moldura desse contexto.
Por um lado, todas as políticas da EU acabam por influir, de uma maneira ou de outra, sobre o território e a sua política de coesão económica, social e inter-regional é cada vez mais solicitada pelos próprios Estados-membros. Por outro lado, o peso da EU no seu conjunto representa o primeiro contraforte de defesa e a primeira alavanca externa das comunidades que a integram – Regiões compreendidas – face aos novos desafios da mundialização.Pode-se, pois, concluir que a construção europeia favorece uma cultura regionalizadora embora não a imponha e só escassamente a integre. Mesmo depois da CIG-96, ela continuará a assentar e a visar uma Europa dos Estados, embora, no terreno, a diferenciação regionalizadora vá continuar a crescer a um ritmo aproximado da integração e, sob esse aspecto, a carecer também de uma paralela atenção e a contribuir para a própria modelação da arquitectura conjunta.

(Regionalização e Europa, UAL, 1996)