quarta-feira, 2 de julho de 2008

Sob o túnel da Alma

Como falar de futebol no dia em que se consuma aquilo que Edgar Morin chamou a primeira “teletragédia planetária”? Sob o rasto apagado das ideologias, escrevia Eduardo Lourenço, antes da morte de Diana no túnel da Alma, que a telenovela era a única “grande narrativa” dos novos tempos. Nessa altura ainda poderíamos pensar, porém, que, além de brejeira, ela se manteria fictícia ou virtual, como, aliás, as anteriores “narrativas” abstractas haviam demonstrado ser, ainda que nalguns casos depois de haverem cruamente devastado meia humanidade.
Agora, depois da morte de Diana, sabe-se que a telenovela é real, pode mesmo ser realmente trágica e está a caminho de fazer história – a mesma sob a qual as “narrativas abstractas” já perderam todas as ilusões. Nestas ocasiões, a vida suspende-se e não admira que, em Inglaterra, o futebol tenha sido adiado. Afinal, o jogo – desportivo, político ou outro – não funciona durante as emoções colectivas ou as revoluções.
A Inglaterra é o país que inventou o futebol e lhe conferiu a aura de desporto do povo. Apesar do estatuto sagrado que daí lhe adveio e que, em princípio, tornaria intocáveis as suas sessões de culto, não lhe poderia passar ao lado a morte da “princesa do povo”, o mesmo (povo) de que também ele (futebol) se tornou espelho. Um minuto de recolhimento só não chega para o silêncio que precede as grandes passagens.
A Imprensa desportiva resistiu ao assunto, é verdade. Eu, porém, à cautela, não. Este tipo de acontecimentos, qual nova “bomba” da sociedade mediática – que, paradoxalmente, é a do total imediatismo –, pode espalhar mais tumultos do que se julga. Pelo menos, tal como as antigas revoluções, levanta a tampa da panela e separa os campos. Desta vez, a tensão é entre a monarquia mediática e a pré-mediática, a do povo e a da aristocracia, mas também é, antes disso, entre a vida privada e os novos poderes da informação – questões que, como as revolucionárias, concernem, ao mesmo tempo e muito profundamente, a instituições e indivíduos. Sob o túnel da Alma será ainda, inevitavelmente, sobretudo uma revolução de consciência.
Entre “paparazzi” e celebridades há, pois, mais do que o acidental. A fotografia é, neste caso, uma revelação muito maior do que a do 6x4. Há já imagens de pelourinho e de cadafalso, para os caricaturistas se vingarem a descrever a situação dos caçadores de fotos, enquanto – também por cá – alguns dos mais despudorados mandaretes do “tiro” jornalístico aproveitam para aparecer na veste de piedosas carpideiras.
Claro que, como é habitual nestas andanças públicas de cena, outras hipocrisias espreitavam. No dia seguinte ao acidente sob o túnel com o sintomático nome de Alma, os tablóides ainda esgotavam. Quanto mais suspeitos mais vendáveis, parecia a lição. Claro que um “dealer” não deixa de ser criminoso por crescer o número dos seus clientes. Ainda não há ratificação democrática dos delitos ou, se se preferir, a sua legitimação pelo mercado.
Mas, afinal, fora o copo do condutor que extravasara! Os pratos da balança ficavam mais equilibrados, mas a nova tensão não ficava mais aliviada. Ainda por cima, ela aparecia entre os caçadores da imagem mais efémera e a instituição (monárquica) suposta ser a da continuidade e resistência aos tempos. No meio, uma “rainha do povo” e princesa dos corações, também ex-mulher de príncipe e namorada de milionário, parecia reunir o mundo todo. Que espaço é que restava para o futebol?
Resta-me desejar que a selecção nacional vença os alemães, se necessário em nome da aliança inglesa, e que Artur Jorge não comece no muro de Berlim o seu “túnel da alma”...

(crónica n'O Jogo, 6 setembro 1997)

Um comentário:

José Leite disse...

Alguns nacos de bem pensar... pena foi que ... a Alemanha tivesse estragado o «guião»!...