segunda-feira, 16 de junho de 2008

Debates Parlamentares: No 1º Aniversário da Constituição (parte II)

c) Em terceiro lugar, nota-se que a Constituição tem uma espécie de reserva mental e está obsessivamente voltada contra o passado e contra o inimigo, assim diluindo involuntariamente objectivos estratégicos próprios e positivos. Aliás, uma certa parte da frustração da praxis constitucional, sobretudo em sede de defesa da Constituição, resulta de certos órgãos e funções estarem pensados para um "inimigo de direita" quando, afinal, foi o Partido Socialista que veio a fixar-se eleitoralmente no poder. Imagina-se o vazio que daqui resulta para certos mecanismos cuja justificação existencial era o combate às quintas colunas de direita!
Quanto ao passado, por mais que se diga é irreversível. Raramente houve um fosso tão grande – e esse fosso é todo o mar a separar o passado e o presente português. Podemos não encontrar o futuro, mas de certeza que não reencontraremos o passado. A persistência na perspectiva da negação só pode adiar a necessária reidentificação de Portugal consigo próprio.
d) Em quarto lugar, a Constituição estava dominada por um problema político e colocada até dentro do próprio vulcão que grava esse problema político. Desceu mesmo ao escrúpulo de delinear projectos políticos de Governo. Era um problema político de paz que estava em causa, quando o problema essencial é, hoje em dia, um problema económico de arranque e desenvolvimento.
Na verdade, não serve de nada fechar os olhos: continuamos economicamente na senda do desastre. O caminho que a ele conduz não foi ainda invertido, embora tendo sido porventura atenuado ou corrigido!
Isto deve ser motivo para nos interrogarmos frente à própria constituição económica: Não é verdade que o objectivo principal da produção deve hoje sobrelevar o da distribuição? Não é verdade que, ante a falência do Estado plantador, produtor e distribuidor, isto é, superpatrão, se deve iniciar o fim da repressão e do bloqueio à iniciativa privada? Não é verdade que a liberalização económica externa no quadro da CEE arrastará uma inevitável liberalização económica interna? Não é verdade que as empresas devem tear uma constituição interna menos ambígua e menos dilacerada e uma maior capacidade de decisão e de operacionalidade prática? Não é verdade que temos de superar o complexo de uma pequena e média constituição económica, em nome do levantamento da economia portuguesa e da "grandeza" material da colectividade?
Por último: não deverão ser, agora, as necessidades de produção a condicionar as estruturas e a ideologia da economia e não vice-versa? Ou será que se julga suficiente para inverter o curso dos resultados, outra política económica que não tout-court uma outra economia?
Tem de se pensar que, se vencer a riqueza foi uma prova difícil desta Revolução, vencer a pobreza será, porém, o seu exame final.
e) Em quinto lugar, esta Constituição é ainda demasiado coriácea, ou, se se quiser, insuficientemente "horácia".
No fundo, desde logo, este carácter resulta de uma certa noção ainda épica da história. (...) Mas é evidente que o horizonte realista da política do Governo é o anónimo enterro desse mesmo estilo épico. E é indubitável que o processo de "democratização" extinguirá as últimas vanguardas e os últimos resíduos da legitimidade não constitucional, ao mesmo tempo que transferirá para os tribunais as funções de jurisdição e arbitragem constitucional.
O próprio Presidente da República é, porventura, considerado constitucionalmente, em certa medida, como sendo também um órgão interno das forças armadas e será, até por isso, que talvez lhe faltem alguns decisivos poderes de acção e intervenção no domínio político civil.
f) Em sexto lugar, assinale-se a complexidade e a transitoriedade comummente reconhecidas da Constituição e que, por si só, justificam a necessidade de uma sua interpretação dinâmica e actualista.
Por exemplo: a Constituição é tão pluralista, quanto à organização política e administrativa, mas tão monista quanto ao conteúdo ideológico, que já foi tratada como uma "monogamia pluralista". Esta contraditória amplitude de objectivos, que inclui, ao lado da ternura pelo indivíduo, a paixão pelo socialismo, é de algum modo desculpável no meio do dilúvio português. Tratava-se de salvar tudo numa espécie de Arca de Noé. Pode, aliás, ver-se aí também o generoso impulso de abraçar de uma vez todo o mundo e todo o futuro.
Hoje, o dilúvio, porém, passou e somos cada vez menos centro do mundo.
A persistência desta complexidade e desta transitoriedade da Constituição constituem assim um verdadeiro engarrafamento político e económico, tanto mais desesperante quanto mais a crise cavalga. (...)
A esperança, porém, é que, apesar de tudo, o conteúdo socialista, já de si indefinido, tende a auto-reprovar-se economicamente e a esbater-se politicamente cada vez mais, e que, ao mesmo tempo, a forma democrática da Constituição, essa sim objectiva, cada dia mais conta como decisivo e mais eficaz princípio constitucional. (...) Constata-se, pois, que a Constituição, enquanto projecto global da sociedade e do Estado no nosso país, se reinterpreta constantemente. Não há nada de ilícito ou de antijurídico em admitir isto! A Constituição é originariamente um contrato. Só em termos marxistas, ou em geral de poder absoluto, a poderíamos considerar um estatuto. E um contrato é um processo multilateral e dinâmico. A Constituição não é a superiora da democracia, é, sim, um meio serviçal da democracia. De outro modo estaríamos apenas perante mais uma barricada: a barricada institucional.
Manifestações de desagrado do PS e do PCP.
Só são incompreensíveis e contraproducentes neste contexto evolucionista o rigidismo e a pretensão de inalterabilidade da Constituição, por um lado, e a concepção dos órgãos de controlo da constitucionalidade como órgãos de repetição da Constituição e defesa militar do status quo, em vez de como órgãos de actualização e regulação político-constitucional.
Manifestações de desagrado do PS e do PCP.
Quanto ao rigidismo do poder de revisão, dá a ideia que a Constituinte teve ciúmes de que o poder de revisão futuro tivesse mais força conformadora do futuro do que a força conformadora que ela própria teve perante a Revolução. Quanto à concepção dos órgãos de controlo como repetidores da Constituição, dir-se-ia que este sistema de garantia valoriza mais a memória do que a inteligência ou a sensibilidade políticas! E tudo isto inspira, afinal, mais a autoridade da força do que a da competência, mais a conservação do que o progresso. Apesar de se saber que aquilo que a autoridade hoje precisa em Portugal não é de rigidez, mas dessa virtude, só aparentemente próxima, que é a concentração.
No mundo de hoje, os problemas, mesmo os políticos, são sempre novos e a razão só se esclarece e perfila claramente perante os problemas. Por isso, é preciso deixar-lhe sempre, à razão, uma grande porta aberta. Cada vez mais, de resto, decidir é, em democracia, decidir com o povo e não apenas em nome do povo. A Constituição, ela própria, não é um rochedo, é também um barco, um barco maior, é certo, mas que não é insensível nem às ondas nem ao vento.
Já se compreende porque é que o CDS votou contra o projecto global da Constituição.
Risos.
Deixou-se compreender também porque, apesar da modificação tácita do espírito constitucional, voltaríamos hoje a votar contra o mesmo projecto constitucional. Não foi contra a Constituição que votámos, aliás, como se tem dito, foi, sim, apenas contra um projecto de Constituição, que só depois de votado poderia ter validade e existir. Consideramos até que o nosso não foi, aliás, de algum modo referendado pela sociedade portuguesa.
Risos.
O socialismo constitucional, apesar de querer ser mais sociedade, não uniu mais a nossa sociedade, mas, pelo contrário, dividiu-a mais.
A mesma sociedade pensa e procura hoje tanto mais a escola e a economia privada quanto mais se acentua a falência dos modelos de economia e de escolas públicas. O nosso não evitou, aliás, que a aprovação da Constituição de 1976 tivesse tido o estilo plebiscitário, embora agora de via reduzida, que revestira a da aprovação da Constituição de 1933. Ao votar não, o CDS foi, além disso, o intérprete de grande parte de uma sociedade, que nós, com o nosso voto, não quisemos deixar democraticamente desamparada e fora da luta pela Constituição democrática de Portugal. A função das Assembleias é, há-de ser, ecoar perante o Estado as preocupações da sociedade e não agir apenas em função da razão do Estado e do equilíbrio do Poder.
Também por isto o CDS não anda com a Constituição às costas! Cumpre-a integralmente, isso sim! O direito que emana num contrato-social-democrático e livre tem para nós o valor supremo e incondicional. Mas por isso mesmo, porque é o contrato-social originário e fundamental, a Constituição tem de ser assumida em consciência por todos os portugueses neste sentido. Que para nós essa consciência é uma consciência preocupada e crítica, que procurará aliás influir activamente no sentido de uma interpretação anti-restritiva e antidogmática da Constituição.
Queríamos desta maneira contribuir para desafogar o nosso horizonte colectivo, para evitar a sufocação ideologista ou o afunilamento metodológico da vida democrática portuguesa e da nossa História moderna, para possibilitar a final redefinição de um projecto político maioritário e concreto, para alargar a possibilidade de acção política e de iniciativa e enriquecimento económico nacionais. Queremos aproximar-nos mais do sentido da História num espaço político e economicamente liberto, como o europeu, e num tempo que, como o do espírito de Helsínquia, será também o do Livre-cambismo ideológico e do intercâmbio ilimitado entre todos os homens.
Não podíamos, aliás, partilhar a ilusão de que um qualquer absolutismo constitucional, tão tentacular como um polvo, resolvesse, por si só, os problemas políticos e económicos fundamentais. É que, diria para terminar, também em política, a salvação não virá só pela palavra, mesmo que seja a da Constituição. A salvação só chegará pelas obras...
Tenho dito.
Aplausos da CDS e protestos do PS e do PCP, bem como de alguns Deputados constituintes.
O Sr. Cunha Simões (CDS): - Marxistas complexados!

(4 de Abril 1977, Diário da Assembleia da República n.º 95, p. 3109 a 3213)

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