terça-feira, 8 de abril de 2008

Revolução, 1976: Passado, Presente, Futuro


Revolução é, em sentido etimológico – como o lembrou há tempos Castanheira Neves (“Revolução e Direito”) – rotação astrológica. É, aliás, quando a curva do movimento revolucionário se começa a aproximar da sua rotação completa, e sobretudo nuns momentos de paz, longe dos pólos da elipse, em que todo o corpo em movimento se reduz à linha da trajectória percorrida, que melhor se capta a origem e o destino do percurso e podemos graduar com precisão os ciclos espacio-temporais do seu passado, do seu presente e do seu futuro. A passagem de mais um ano mais ajuda a esta revelação – desfile de toda a revolução, num só palco ou tela, através dos seus três «andamentos» principais:

a) O ciclo épico – romântico; b) O ciclo lírico – fantasista; c) O ciclo realista – racionalista.

É uma classificação ajustada a uma revolução que tem muito de literário e num país que deve muito aos poetas. A dialéctica hegeliana da tese, antítese e síntese seria demasiado abstracta e geral – e portanto cortante e delimitativa – para um país de «padrões», «bandeiras» e «velas» e uma revolução de «palavras de ordem», «comícios» e «casos de informação» (Renascença, Televisão, R.C.P., Século, etc …).
1) O primeiro foi o ciclo épico, completamente encerrado com o 25 de Novembro e já com o balão a esvaziar a partir da queda de Gonçalves. Foi a fase da subida do papagaio puxado por mãos infantis, com vento de feição, soprado por foles interessados.
Duas forças de sinal contrário mas de resultado conjunto – a iconoclasta e a utópica – traçam a sociedade de cima a baixo e de lado a lado, fazendo estalar toda a estrutura reticular das mínimas formas de vida colectiva e impedindo qualquer religação ou soldadura entre os vários fragmentos seccionados. A Revolução é sobretudo recusa – o negativo absoluto da ordem evicta. Sedenta de factos e emoções, a Revolução infantilmente não chega ao seu auto-reconhecimento e aspira a um modelo «paternal» ou «ancestral» de Revolução. É por isso que desconhece os seus limites.
2) O segundo é o ciclo lírico: A Revolução percebe-se a si mesma. Do mito da Revolução decai-se para a realidade da Revolução. Sente-se que a revolução tem já um passado. É a fase da revolução dos «puros», dos mais revolucionários entre os revolucionários. Esta purificação pode até parecer autofagia. É a fase dos revolucionários «bons» e «bens» a seguir à dos revolucionários «maus» e «feios». Em vez das curtas máximas revolucionárias aparecem os discursos, uma queda de ritmo, um abandono da rua, uma substituição do «teatro» e da «fita» pela «literatura revolucionária», e espreita mesmo um certo barroquismo. O socialismo é cândido: tão cândido que nem existe em parte nenhuma do mundo, sobretudo do mesmo mundo, socialismo semelhante. A Revolução é pura e contempla-se narcisisticamente mas, sem saber, vai ficando cada vez mais sozinha. O espírito já se foi com as potências do gólgota e a razão ainda não chegou. A Revolução dá-se a luxos formais, patina e é nesta fase intermediária que melhor se percebe o que as Revoluções têm de puro intervalo (ou recreio) na rotina já prenunciada de grande preguiça colectiva.
3) O terceiro é o ciclo realista: A chamada à terra. A Revolução sai de si, do seu processo interno. O processo revolucionário, de formal transforma-se em processo revolucionário real. Deixa de ser comandado só de cima, passa a ser desafiado de baixo. A Revolução tem que sair do seu casulo e estabelecer uma relação operativa com o mundo social a que pertence. Soluções em vez da bravata do mito (épico) ou do sentimento (lírico) da Revolução. É, sobretudo, um centro unívoco e definido em vez da decomposição violenta (romântica) ou barroca (fantasista) das etapas antecedentes. Nem as estátuas de mármore, nem as de cera, mas sim a direcção de um projecto concreto. O macho da Revolução encontra então a sua fêmea. Se até então a Revolução se desfasava da sociedade, por um lado, e do Estado, por outro, ei-la agora, porque cansada, já liricamente mole, possuída por ambos… e sabe-se lá se vorazmente.
Em que fase se encontra a Revolução Portuguesa neste momento? Formalmente entre a 2.ª e a 3.ª fases; realmente, porém, perante a necessidade de passar rapidamente à última, sobretudo dado o aperto das condições económicas. Estamos na fase dos «últimos pensamentos» sobre a Revolução. Esse é o gongo do último «round». A não se avançar para cumprir o ciclo poderia a «rotação-revolução» ser a de uma estrela cadente. É preciso respeitar a «passada» astrológica…
A racionalidade é mais precisa e determinada que o resto: deve chegar ao entardecer, depois do recolhimento lírico, mas antes da noite.
A racionalidade, além de precisa e por o ser, é, também, empenhada e criadora. Este último salto não deve ser um empurrão. Deve ser uma iniciativa, ou mesmo um «assalto». De facto, é então que começará – esperemo-lo – a única Revolução… definitiva …

(in “A Bordo da Revolução”, Ensaios de Análise Política 75/76, Selecta)

Um comentário:

José Leite disse...

Este texto tem que ser inserido no seu contexto em que os «donos da Revolução» não desciam à terra!

A alusão ao «anoitecer» foi profética!...

A Revolução é a Democracia autêntica, daí eu pensar que há muito «anoiteceu», como o saudoso Francisco Lucas Pires ia alvitrando...