(...)
Em todo o trajecto recusou-se uma Constituição que pudesse surgir por via plebiscitária ou referendária – talvez porque à Constituição só se deveria chegar através do próprio “processo” revolucionário. Em comparação com uma democratização como a grega, por exemplo, a “legitimação eleitoral” chegará, entre nós, por sua vez, relativamente tarde, quando os problemas já haviam encontrado soluções consumadas por outras vias. Por outro lado, o processo revolucionário progrediria muito rapidamente pois, entre “consolidar para avançar” ou “avançar para consolidar”, a opção da cúpula político-militar seria a segunda. Em relação a este trajecto, como dirá Miguel Galvão Telles, “da perspectiva do direito do período revolucionário, a Constituição é o seu ponto de chegada”.
Na sequência da mesma demonstração, é também sintomática a verificação de que, em vez de se apresentar, liminar e preferentemente, com uma clara hierarquia das fontes de Direito e ordenação do sistema normativo, ou como cabeça de uma ordem jurídica, a Constituição se revela, sobretudo, como “plano” e “molde” de um “projecto” no sentido político-normativo, também aqui, pois, na linha directa de descendência e extensão da Revolução. De resto, vêm a repassar mesmo o texto constitucional todas as autonomias e formas de participação “libertadas” pela Revolução, a qual fora também uma abertura às revoltas ou sub-revoluções sectoriais e zonais, mesmo àquelas que, numa reordenação coerente do todo, poderiam parecer de problemática compatibilização ou até contraditórias entre si.
É claro que a Revolução sempre operaria como o “ovo” da Constituição, na acepção de que aquela já contém o princípio ou a potência da ordem que nesta última se irá imprimir. Também se sabe, como diz Castanheira Neves, que “a revolução constitui sempre um seu direito e não pode prescindir do direito”, além de que cumpre “uma parte da missão que, em período de estabilidade, pertence à Constituição”. Não se ignora que há mesmo nela algo de recondução de uma “ordem” perdida (...) Mais do que isso, para H. Berman, toda a tradição “legal” do Ocidente nasceu de uma “Revolução” e durante séculos tem, depois, vindo a ser periodicamente interrompida e transformada por revoluções. Mas é evidente que a Constituição se poderia ter emancipado ou, até, rompido com a linearidade formal do processo, embora em perfeita compatibilidade com o auto-desenvolvimento da progressão económica e política da Revolução. Entre nós, ao contrário, não se tratou sequer só de uma adopção textual – ainda que não “recepção” em sentido jurídico – mas, mais do que isso, de um reatamento, síntese e reconstituição da Revolução através da Constituição.
Por outro lado, a Constituição veio não só reproduzir os conflitos da Revolução como quis mesmo representar aquilo que, na sua própria versão originária (n.º 1 do art.º 10.º), ela designara como “desenvolvimento pacífico do processo revolucionário”. (...)
A Constituição viria a corresponder mesmo à continuação da Revolução pela lei. Se não era apenas o seu sudário ou mata-borrão, funcionou, pelo menos, como uma espécie de respectivo “poder de revisão”, mas não só dentro da legalidade formal da Revolução, como de acordo com a continuidade desta e da sua obra. A própria extensão desmesurada da Constituição é um sinal da sua preocupação regulamentar em relação a um Direito que a Revolução já postulou, da mesma maneira que a linguagem algo “barroca” do texto pode ser vista como um eco vicinal da natural estridência ou “febre” revolucionária. (...)
O MFA, afinal, terá agido não apenas como autor da “ideia de Direito” que conforma a Constituição mas, através do conteúdo dos Pactos e demais actos de legalidade revolucionária, como verdadeiro poder constituinte material. (...)
Mas, como Jorge Miranda salienta, mais graves eram ainda “as limitações estabelecidas nesse Pacto, quer no respeitante à Assembleia Constituinte, quer no respeitante aos futuros órgãos de soberania – as primeiras como que poderiam, na prática, colocar sob tutela a Assembleia, as segundas correspondiam a uma pré-Constituição”. (...) O MFA detinha pois um poder de controlo sobre o poder constituinte formal. (...)
A Constituição e a Constituinte estavam, pois, muito condicionadas, contra o princípio, por exemplo, enunciado por Badura, de que “a vontade constituinte do Povo” tem de ser o produto de uma confrontação livre de grupos e opiniões que não pode comportar qualquer “decisão voluntarista”. De facto, os limites do poder constituinte parlamentar eram não só “numerosos”, como correspondiam às decisões fundamentais, isto é, às escolhas da “direcção constituinte”. Não só há um processo constituinte contínuo, como os elementos materiais parecem preceder as formas, as quais se limitariam a exarar a fórmula “definitiva” da lei constitucional. As “formas” jurídicas como que desempenhavam um papel veicular. (...)
O próprio mandato da Assembleia Constituinte tinha, aliás, algo de uma missão, não forçosamente no sentido militar ou político-militar da expressão, mas como cumprimentos de um objectivo estratégico definido pelo comando da revolução. Aparentemente estaríamos perante uma confirmação apócrifa, embora também num encaixe muito específico, da tese de Haugs, referida por Ehmke, segundo a qual no acto de se dar a Constituição o Poder Constituinte se tornaria num poder constituído, num órgão de Estado, com todas as consequências daí dedutíveis, nomeadamente em sede de revisão. É certo que esta Assembleia Constituinte provém de eleições directas, mas também é verdade que os agentes e as propostas partidárias haviam sido previamente aperfeiçoadas do ponto de vista revolucionário. (...)
Esta continuidade e contiguidade do MFA, à frente, ao lado ou na retaguarda do poder constituinte e da Constituição, ainda que sucessivamente diminuído, é muito relevante. Estabelece uma ligação umbilical prolongada para lá do próprio “parto” da Constituição e que só se extingue quando é considerada como assegurada e interiorizada pelo próprio movimento constitucional. (...) O processo Revolução-Constituição não tem descontinuidade interna embora se possa falar de sucessivos actos de “revisão” interna e se possa considerar que prevaleceu, através dessas sucessivas revisões, a interpretação mais “moderada” da Revolução.
Pode até ser possível verificar como é que, por uma espécie de astúcia interna da História, se veio a realizar uma aproximação recíproca e sucessiva entre Revolução e Constituição. De facto, através do contra-golpe de 25 de Novembro 1975, a Revolução conflui por si mesma para a Constituição, numa espécie de acostagem ou repouso que teria parecido antes impossível e que era um produto da transformação interna da Revolução. Essa aproximação é, porém, apenas recíproca daquela que, em sentido inverso e simétrico, a Constituição fora fazendo à Revolução. (...)
Tal como acontecera depois de Napoleão declarar a Revolução terminada, também aqui se abre a era da sua “codificação” e a lei passa a ser considerada o “depósito sagrado” que explica a rigidez prolongada até à própria interpretação. A Revolução não só não acabara como “superintendia” a Constituição, embora esta, por sua vez, viesse a transformar em “definitiva” essa legitimidade antes “provisória”. A Constituição seria mesmo a continuação da Revolução “por outros meios”, os meios mais estáveis e mais respeitáveis do Direito Constitucional. Em última análise, a Constituição poderia ser vista como a Revolução formal ou a forma da Revolução e a Revolução como a Constituição material ou a matéria da Revolução. (...)
Neste quadro, a verdadeira polarização dialéctica seria entre a Revolução e a Constituição de um lado e a realidade política, económica e social emergente, do outro lado, mais do que entre Constituição e Revolução. Afinal, se Revolução é o oposto de Evolução é-o não só pela ruptura que identifica a sua concepção genética, mas também pelo arrimo fixista em que depois se barrica ou entrincheira. (...)
Só por a Revolução não ter por intérprete um partido, uma chefia, mas um “documento”, está já aberta uma radical expressão de possibilidade democrática. Esse simples facto vem expô-la à crítica e confronto, no que será um permanente desafio ao seu próprio “mito”. (...)
(in "Teoria da Constituição de 1976 - a transição dualista", p. 136-148)
Na sequência da mesma demonstração, é também sintomática a verificação de que, em vez de se apresentar, liminar e preferentemente, com uma clara hierarquia das fontes de Direito e ordenação do sistema normativo, ou como cabeça de uma ordem jurídica, a Constituição se revela, sobretudo, como “plano” e “molde” de um “projecto” no sentido político-normativo, também aqui, pois, na linha directa de descendência e extensão da Revolução. De resto, vêm a repassar mesmo o texto constitucional todas as autonomias e formas de participação “libertadas” pela Revolução, a qual fora também uma abertura às revoltas ou sub-revoluções sectoriais e zonais, mesmo àquelas que, numa reordenação coerente do todo, poderiam parecer de problemática compatibilização ou até contraditórias entre si.
É claro que a Revolução sempre operaria como o “ovo” da Constituição, na acepção de que aquela já contém o princípio ou a potência da ordem que nesta última se irá imprimir. Também se sabe, como diz Castanheira Neves, que “a revolução constitui sempre um seu direito e não pode prescindir do direito”, além de que cumpre “uma parte da missão que, em período de estabilidade, pertence à Constituição”. Não se ignora que há mesmo nela algo de recondução de uma “ordem” perdida (...) Mais do que isso, para H. Berman, toda a tradição “legal” do Ocidente nasceu de uma “Revolução” e durante séculos tem, depois, vindo a ser periodicamente interrompida e transformada por revoluções. Mas é evidente que a Constituição se poderia ter emancipado ou, até, rompido com a linearidade formal do processo, embora em perfeita compatibilidade com o auto-desenvolvimento da progressão económica e política da Revolução. Entre nós, ao contrário, não se tratou sequer só de uma adopção textual – ainda que não “recepção” em sentido jurídico – mas, mais do que isso, de um reatamento, síntese e reconstituição da Revolução através da Constituição.
Por outro lado, a Constituição veio não só reproduzir os conflitos da Revolução como quis mesmo representar aquilo que, na sua própria versão originária (n.º 1 do art.º 10.º), ela designara como “desenvolvimento pacífico do processo revolucionário”. (...)
A Constituição viria a corresponder mesmo à continuação da Revolução pela lei. Se não era apenas o seu sudário ou mata-borrão, funcionou, pelo menos, como uma espécie de respectivo “poder de revisão”, mas não só dentro da legalidade formal da Revolução, como de acordo com a continuidade desta e da sua obra. A própria extensão desmesurada da Constituição é um sinal da sua preocupação regulamentar em relação a um Direito que a Revolução já postulou, da mesma maneira que a linguagem algo “barroca” do texto pode ser vista como um eco vicinal da natural estridência ou “febre” revolucionária. (...)
O MFA, afinal, terá agido não apenas como autor da “ideia de Direito” que conforma a Constituição mas, através do conteúdo dos Pactos e demais actos de legalidade revolucionária, como verdadeiro poder constituinte material. (...)
Mas, como Jorge Miranda salienta, mais graves eram ainda “as limitações estabelecidas nesse Pacto, quer no respeitante à Assembleia Constituinte, quer no respeitante aos futuros órgãos de soberania – as primeiras como que poderiam, na prática, colocar sob tutela a Assembleia, as segundas correspondiam a uma pré-Constituição”. (...) O MFA detinha pois um poder de controlo sobre o poder constituinte formal. (...)
A Constituição e a Constituinte estavam, pois, muito condicionadas, contra o princípio, por exemplo, enunciado por Badura, de que “a vontade constituinte do Povo” tem de ser o produto de uma confrontação livre de grupos e opiniões que não pode comportar qualquer “decisão voluntarista”. De facto, os limites do poder constituinte parlamentar eram não só “numerosos”, como correspondiam às decisões fundamentais, isto é, às escolhas da “direcção constituinte”. Não só há um processo constituinte contínuo, como os elementos materiais parecem preceder as formas, as quais se limitariam a exarar a fórmula “definitiva” da lei constitucional. As “formas” jurídicas como que desempenhavam um papel veicular. (...)
O próprio mandato da Assembleia Constituinte tinha, aliás, algo de uma missão, não forçosamente no sentido militar ou político-militar da expressão, mas como cumprimentos de um objectivo estratégico definido pelo comando da revolução. Aparentemente estaríamos perante uma confirmação apócrifa, embora também num encaixe muito específico, da tese de Haugs, referida por Ehmke, segundo a qual no acto de se dar a Constituição o Poder Constituinte se tornaria num poder constituído, num órgão de Estado, com todas as consequências daí dedutíveis, nomeadamente em sede de revisão. É certo que esta Assembleia Constituinte provém de eleições directas, mas também é verdade que os agentes e as propostas partidárias haviam sido previamente aperfeiçoadas do ponto de vista revolucionário. (...)
Esta continuidade e contiguidade do MFA, à frente, ao lado ou na retaguarda do poder constituinte e da Constituição, ainda que sucessivamente diminuído, é muito relevante. Estabelece uma ligação umbilical prolongada para lá do próprio “parto” da Constituição e que só se extingue quando é considerada como assegurada e interiorizada pelo próprio movimento constitucional. (...) O processo Revolução-Constituição não tem descontinuidade interna embora se possa falar de sucessivos actos de “revisão” interna e se possa considerar que prevaleceu, através dessas sucessivas revisões, a interpretação mais “moderada” da Revolução.
Pode até ser possível verificar como é que, por uma espécie de astúcia interna da História, se veio a realizar uma aproximação recíproca e sucessiva entre Revolução e Constituição. De facto, através do contra-golpe de 25 de Novembro 1975, a Revolução conflui por si mesma para a Constituição, numa espécie de acostagem ou repouso que teria parecido antes impossível e que era um produto da transformação interna da Revolução. Essa aproximação é, porém, apenas recíproca daquela que, em sentido inverso e simétrico, a Constituição fora fazendo à Revolução. (...)
Tal como acontecera depois de Napoleão declarar a Revolução terminada, também aqui se abre a era da sua “codificação” e a lei passa a ser considerada o “depósito sagrado” que explica a rigidez prolongada até à própria interpretação. A Revolução não só não acabara como “superintendia” a Constituição, embora esta, por sua vez, viesse a transformar em “definitiva” essa legitimidade antes “provisória”. A Constituição seria mesmo a continuação da Revolução “por outros meios”, os meios mais estáveis e mais respeitáveis do Direito Constitucional. Em última análise, a Constituição poderia ser vista como a Revolução formal ou a forma da Revolução e a Revolução como a Constituição material ou a matéria da Revolução. (...)
Neste quadro, a verdadeira polarização dialéctica seria entre a Revolução e a Constituição de um lado e a realidade política, económica e social emergente, do outro lado, mais do que entre Constituição e Revolução. Afinal, se Revolução é o oposto de Evolução é-o não só pela ruptura que identifica a sua concepção genética, mas também pelo arrimo fixista em que depois se barrica ou entrincheira. (...)
Só por a Revolução não ter por intérprete um partido, uma chefia, mas um “documento”, está já aberta uma radical expressão de possibilidade democrática. Esse simples facto vem expô-la à crítica e confronto, no que será um permanente desafio ao seu próprio “mito”. (...)
(in "Teoria da Constituição de 1976 - a transição dualista", p. 136-148)
Nenhum comentário:
Postar um comentário