No mundo moderno, a relação entre os católicos e a política volta a estar na primeira linha, tanto da reflexão como da História. Por um lado, é o que resulta da origem, postura e doutrina de um Papa “empenhado” como João Paulo II. É a consequência do seu apelo a uma fé indivisível, assumida como “cultura” que há-de ser “plenamente assumida, pensada e vivida”, em todos os planos da existência, sem excepção. Por outro lado, é a própria história concreta, de hoje, nas Filipinas, Polónia, Nicarágua, Chile, Haiti, Timor até, na África do Sul também, que a tal incita. Aí a Igreja e os católicos (ou os cristão em geral) assumem um claro papel político, ao mesmo tempo de “libertação” e de “reconciliação” nacional.
Curiosamente, entre nós, “nação fidelíssima”, país católico entre todos (na idade da crença e no número dos crentes), o tema ou é esquivado ou apenas obscuramente aludido. A questão do aborto, o problema de um canal para a Igreja, ou, em geral, a influência pública através da Rádio Renascença, são os aspectos mais salientes de uma “intervenção” quase política. No entanto, além de avulsa, limitada e defensiva, essa intervenção tem envolvido mais directamente (salvo a questão do aborto) a organização da Igreja do que a totalidade do mundo católico. A Igreja está atenta e activa, como o demonstram os seus documentos pastorais, ou a intervenção dos seus bispos e sacerdotes, além da pedagogia institucional da Universidade e do ensino católico em geral. Há, além disso, significativos movimentos de leigos, sobretudo no interior da própria Igreja, e uma reiteração da referência pastoral ao “dever de participação política” dos crentes. Não se pode dizer, porém, que o “movimento católico” mobilize, abranja ou impregne, com vocação dirigente, uma concepção própria da vida social e política, no conjunto dos aspectos que esta reveste e com a implicação, coordenada e militante, dos vários grupos e energias de todo o “povo de Deus”.
É certo que, entre nós, não existe qualquer “ruptura” que possa explicar, como no caso dos países citados, uma “revelação” ou “actualização” tão manifesta da consciência política dos católicos. Mas é também verdade que em toda a Europa, mesmo na mais laicizada e normalizada, essa consciência cristã conhece formas práticas mais intensas, organizadas e permanentes de relação com a política e o Estado do que as existentes entre nós. No caso da juventude, essa tendência tende mesmo a ampliar-se, como o mostra bem o maior movimento juvenil italiano – o Movimento Popular. Mesmo os velhos partidos cristãos continuam a ter êxitos crescentes – surpreendentes até! –, como aconteceu em recentes eleições na Holanda e na Áustria. A própria construção europeia assenta originariamente na visão de uma unidade da cultura cristã do velho continente (como o lembrava recentemente um artigo de Xavier Pintado, a propósito do grande homem político católico que foi Robert Schumann) e a bipolarização política essencial na Europa é entre os representantes do seu “humanismo cristão” e os do seu “humanismo laico”.
Entre nós, é evidente que não é assim. O mundo católico e o mundo político não têm uma relação directa e una. O primeiro intervém sobre o segundo como “palavra”, mas não no meio dele, como “acção” católica. A maioria moral ou é minoria política ou está pura e simplesmente ausente do movimento de condução global da sociedade. Há uma desproporção enorme entre o catolicismo da missa dominical e o que isso representa como valor “normativo” e “prático” na direcção e funcionamento das estruturas dirigentes da nossa sociedade. Parece mesmo subsistir uma questão prévia de legitimação dos católicos para poderem intervir como tal a partir da sua identidade e dos seus valores, embora apenas nos termos e com os argumentos de afirmação comum dos cidadãos.
O que não pode deixar de admitir, em qualquer caso, é que esta questão é tão importante para a sociedade como para a própria Igreja. É importante para a sociedade porque a renovação “ética” necessária já se tornou entre nós num factor de demagogia eleitoral, mas não correspondeu ainda a nenhum resultado autêntico, duradoiro e profundo. Aliás, é duvidoso que essa renovação possa ser operada a partir de forças meramente políticas ou deliberações simplesmente “voluntaristas”, “moralistas” e “intelectualistas”, que, por um lado, invocam a “ética”, mas, por outro lado, tratam a “verdade” em política como manifestação de candura ou ingenuidade. A renovação “ética” para ser autêntica e eficaz precisaria de levedar por dentro da própria sociedade, através da cultura e da moral que a podem identificar e recuperar.
Mas a questão de uma nova relação entre os católicos e a política é também importante para a Igreja. É que os valores que esta representa enfrentam, hoje, um desafio crucial para o seu futuro e, em geral, para a experiência da própria fé. Falo dos seus valores e significados espirituais, mas também da escola livre, da informação aberta e responsável, da unidade da família como base de desenvolvimento social, da reconciliação entre “solidariedade” e “eficiência” no campo da produção, da mobilização cívica da juventude, do papel mediador dos grupos intermédios, da humanização da saúde e da política demográfica, da regionalização e promoção das zonas mais desfavorecidas. São tudo outras tantas zonas em relação às quais teria utilidade sistematizar uma política activa de inspiração cristã. Inclusivamente só uma política cristã poderia desempenhar o papel mediador e pacificador que, até há pouco, parecia ainda caber aos “militares” na sociedade portuguesa. Não será uma política de inspiração cristã que dividirá o mundo católico. Pelo contrário, será a sua ausência – como o demonstra a realidade actual – que provocará não só a divisão, como a anemia e o vazio, capazes de conduzir a uma desagregação progressiva da mais pública e enraizada forma de consciência moral do País – a cristã.
Há, pelo menos, que pôr as questões. Por exemplo: a missão da Igreja é a construção de uma sociedade nova ou, apenas, a “denúncia” dos “pecados” da sociedade existente? É possível confinar a fé religiosa ao momento e lugar do sagrado, enquanto todas as restantes formas de vida se podem desenvolver segundo uma análise em que a fé não entra? É possível ignorar os valores cristãos na vida pública, sem com isso operar uma ruptura com as próprias raízes históricas, culturais ou religiosas da sociedade portuguesa? É possível superar a crise contemporânea e nacional, mantendo este dualismo entre a vida interior dos homens e a vida pública das comunidades? Será possível que S. Tomás reine para dentro de uma porta e Machiavelli no meio da praça pública onde essa porta desemboca?
Não se trata de desenterrar o machado de guerra de uma nova “questão religiosa”. Será necessário mesmo ultrapassar restos de clericalismo, ampliando pontes para o mundo laico, que repudiou também o anticlericalismo. A verdadeira tolerância, no entanto, é a que assenta na fortaleza das próprias convicções e os católicos não têm que ter uma atitude política passiva, clandestina, dividida, pessimista e subalterna. Não têm que deixar “laicizar” a mais importante parte do seu campo de consciência e acção – aquele que tem a ver com a “substância” e as “expressões” mais elevadas do seu ser social.
A geral fraqueza da sociedade civil portuguesa não ajuda. Contribui mesmo para a perda das últimas certezas dessa sociedade. A concepção dominante da História é ainda demasiado imediatista e é nesse contexto que se explica o activismo, dirigismo e crescimento do Estado como único arrimo para a erosão da consciência política colectiva. Mas há que reagir e os católicos, com a Igreja, podem bem ser a parte mais sólida dessa recuperação da sociedade civil. Até como via para reabilitar a política e evitar que esta continue a ser um puro jogo de superfície, onde a própria renovação “ética” acabe por se transformar numa nova demagogia. Talvez a renovação “moral”, a partir da sociedade real e dos seus valores profundos, entranhadamente cristãos, seja afinal mais simples e mais eficaz do que a renovação “ética”, a partir, outra vez, dos modelos da Revolução, do Estado e dos seus partidos. Aliás, o processo de reidentificação que a integração europeia nos oferece e requer – numa Europa que é também a Europa das Catedrais – é uma boa oportunidade para essa segunda forma de verdadeira auto-determinação da nossa sociedade – e não apenas do nosso Estado.
É certo que, entre nós, não existe qualquer “ruptura” que possa explicar, como no caso dos países citados, uma “revelação” ou “actualização” tão manifesta da consciência política dos católicos. Mas é também verdade que em toda a Europa, mesmo na mais laicizada e normalizada, essa consciência cristã conhece formas práticas mais intensas, organizadas e permanentes de relação com a política e o Estado do que as existentes entre nós. No caso da juventude, essa tendência tende mesmo a ampliar-se, como o mostra bem o maior movimento juvenil italiano – o Movimento Popular. Mesmo os velhos partidos cristãos continuam a ter êxitos crescentes – surpreendentes até! –, como aconteceu em recentes eleições na Holanda e na Áustria. A própria construção europeia assenta originariamente na visão de uma unidade da cultura cristã do velho continente (como o lembrava recentemente um artigo de Xavier Pintado, a propósito do grande homem político católico que foi Robert Schumann) e a bipolarização política essencial na Europa é entre os representantes do seu “humanismo cristão” e os do seu “humanismo laico”.
Entre nós, é evidente que não é assim. O mundo católico e o mundo político não têm uma relação directa e una. O primeiro intervém sobre o segundo como “palavra”, mas não no meio dele, como “acção” católica. A maioria moral ou é minoria política ou está pura e simplesmente ausente do movimento de condução global da sociedade. Há uma desproporção enorme entre o catolicismo da missa dominical e o que isso representa como valor “normativo” e “prático” na direcção e funcionamento das estruturas dirigentes da nossa sociedade. Parece mesmo subsistir uma questão prévia de legitimação dos católicos para poderem intervir como tal a partir da sua identidade e dos seus valores, embora apenas nos termos e com os argumentos de afirmação comum dos cidadãos.
O que não pode deixar de admitir, em qualquer caso, é que esta questão é tão importante para a sociedade como para a própria Igreja. É importante para a sociedade porque a renovação “ética” necessária já se tornou entre nós num factor de demagogia eleitoral, mas não correspondeu ainda a nenhum resultado autêntico, duradoiro e profundo. Aliás, é duvidoso que essa renovação possa ser operada a partir de forças meramente políticas ou deliberações simplesmente “voluntaristas”, “moralistas” e “intelectualistas”, que, por um lado, invocam a “ética”, mas, por outro lado, tratam a “verdade” em política como manifestação de candura ou ingenuidade. A renovação “ética” para ser autêntica e eficaz precisaria de levedar por dentro da própria sociedade, através da cultura e da moral que a podem identificar e recuperar.
Mas a questão de uma nova relação entre os católicos e a política é também importante para a Igreja. É que os valores que esta representa enfrentam, hoje, um desafio crucial para o seu futuro e, em geral, para a experiência da própria fé. Falo dos seus valores e significados espirituais, mas também da escola livre, da informação aberta e responsável, da unidade da família como base de desenvolvimento social, da reconciliação entre “solidariedade” e “eficiência” no campo da produção, da mobilização cívica da juventude, do papel mediador dos grupos intermédios, da humanização da saúde e da política demográfica, da regionalização e promoção das zonas mais desfavorecidas. São tudo outras tantas zonas em relação às quais teria utilidade sistematizar uma política activa de inspiração cristã. Inclusivamente só uma política cristã poderia desempenhar o papel mediador e pacificador que, até há pouco, parecia ainda caber aos “militares” na sociedade portuguesa. Não será uma política de inspiração cristã que dividirá o mundo católico. Pelo contrário, será a sua ausência – como o demonstra a realidade actual – que provocará não só a divisão, como a anemia e o vazio, capazes de conduzir a uma desagregação progressiva da mais pública e enraizada forma de consciência moral do País – a cristã.
Há, pelo menos, que pôr as questões. Por exemplo: a missão da Igreja é a construção de uma sociedade nova ou, apenas, a “denúncia” dos “pecados” da sociedade existente? É possível confinar a fé religiosa ao momento e lugar do sagrado, enquanto todas as restantes formas de vida se podem desenvolver segundo uma análise em que a fé não entra? É possível ignorar os valores cristãos na vida pública, sem com isso operar uma ruptura com as próprias raízes históricas, culturais ou religiosas da sociedade portuguesa? É possível superar a crise contemporânea e nacional, mantendo este dualismo entre a vida interior dos homens e a vida pública das comunidades? Será possível que S. Tomás reine para dentro de uma porta e Machiavelli no meio da praça pública onde essa porta desemboca?
Não se trata de desenterrar o machado de guerra de uma nova “questão religiosa”. Será necessário mesmo ultrapassar restos de clericalismo, ampliando pontes para o mundo laico, que repudiou também o anticlericalismo. A verdadeira tolerância, no entanto, é a que assenta na fortaleza das próprias convicções e os católicos não têm que ter uma atitude política passiva, clandestina, dividida, pessimista e subalterna. Não têm que deixar “laicizar” a mais importante parte do seu campo de consciência e acção – aquele que tem a ver com a “substância” e as “expressões” mais elevadas do seu ser social.
A geral fraqueza da sociedade civil portuguesa não ajuda. Contribui mesmo para a perda das últimas certezas dessa sociedade. A concepção dominante da História é ainda demasiado imediatista e é nesse contexto que se explica o activismo, dirigismo e crescimento do Estado como único arrimo para a erosão da consciência política colectiva. Mas há que reagir e os católicos, com a Igreja, podem bem ser a parte mais sólida dessa recuperação da sociedade civil. Até como via para reabilitar a política e evitar que esta continue a ser um puro jogo de superfície, onde a própria renovação “ética” acabe por se transformar numa nova demagogia. Talvez a renovação “moral”, a partir da sociedade real e dos seus valores profundos, entranhadamente cristãos, seja afinal mais simples e mais eficaz do que a renovação “ética”, a partir, outra vez, dos modelos da Revolução, do Estado e dos seus partidos. Aliás, o processo de reidentificação que a integração europeia nos oferece e requer – numa Europa que é também a Europa das Catedrais – é uma boa oportunidade para essa segunda forma de verdadeira auto-determinação da nossa sociedade – e não apenas do nosso Estado.
(artigo no Diário de Notícias, 7 de agosto de 1986)
Um comentário:
Muito domínio deste senhor!...
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