Na minha colaboração da semana passada dizia-se que o poder em Portugal tem sido sempre muito mais familiar e muito mais inculto – pelo menos do ponto de vista político – do que é normal. Acrescentava-se, por sua vez, que a cultura portuguesa fora sempre uma das mais literárias e apolíticas (ou despolitizadas) do mundo ocidental.
São juízos que o próprio 25 de Abril talvez possa comprovar de maneira nítida. No processo político que nessa data teve origem parece verificar-se, de facto, a conjugação de uma série de actos e problemas militares, por um lado, com várias e mais ou menos inspiradas declarações literárias, por outro. De um lado constata-se quer a abundância de programas políticos, planos económicos, seminários de estudo, debates, “documentos”, comentários, proclamações e análises, quer a constância, a premência e a importância das questões político-militares. Do outro lado, ao contrário, pode ver-se, porém, a falta de um equilíbrio político consolidado, a falta de objectivos políticos maioritários e a falta de resultados económicos minimamente satisfatórios. De um lado temos, pois, uma revolução muito literária e muito militar; do outro, uma revolução pouco económica e pouco culta, no sentido político da expressão.
Vê-se que faltam as obras de que nos é devedora a economia política. Vê-se que faltam a direcção e a estabilidade que é costume exigir da função constitucional. Falta, em suma, o conteúdo, isto é, os decididos padrões éticos, económicos, culturais, e até estéticos, que costumam ser apanágio de qualquer revolução. Como se tudo fora uma esgrima de espadas (nos momentos de crise) ou de palavras (nos momentos de rotina revolucionária). Como se tratasse de um teatro especial em que os gestos são feitos por actores militares e as palavras são ditos por actores civis – afinal, não em dois teatros opostos mas num teatro único, onde há, porém, um recíproco complemente de papéis. Dá a ideia que já foi escrito o envelope da Revolução – mas falta, ainda, escrever a carta.
É que, também, o 25 de Abril não tinha nessa data exacta um claro projecto político e económico. Era sobretudo a junção de um “tiro de misericórdia” militar no regime deposto, com um primeiro “Programa” – espécie de edital de Revolução – a abrir, aliás, a série de programas que depois se publicariam. O próprio “Programa”, porém, pelo apagado e ambíguo destino que teve, vê-se que foi mais uma segunda ideia e uma ideia incidental, do que a essência e o cerne do projecto revolucionário ele mesmo.
Não é, aliás, por acaso, embora seja talvez sem querer, que a Revolução que vivemos é conhecida mais pela sua data do que pela sua marca. É isso que acontece, em geral, com os acontecimentos retumbantes que, um dia qualquer, irrompem História adentro, mas sobre os quais apenas se fica a saber de imediato que abrem uma nova era – salvífica porventura – mas a respeito dos quais tudo o que, além disso, conste é, desde logo, perecível e confuso, ou está, pelo menos, sujeito a uma disputa inacabada, ou a uma verificação ulterior.
Uma nova era, sem dúvida! Mas uma nova era de quê, uma nova era de quem? O 25 de Abril é esta mesma pergunta, muito mais do que uma qualquer resposta. O seu significado imediato foi, sobretudo, de ruptura. Simbolicamente foi uma queda – a queda de um regime sentado. O 25 de Abril vem a ser, afinal, a queda multiplicada e em série desse regime sentado que fora o salazarismo. No 25 de Abril, a queda alastra do forte do Estoril pelo País fora, atingindo a profundidade e o âmago de Portugal, até para lá dele próprio, onde houvesse uma raíz ou só uma folha desta velha árvore que Portugal é.
É por isto mesmo que é preciso remontar mais atrás. É preciso remontar ao momento em que o tombo da “primeira cadeira” (aliás, rigorosamente também cátedra no caso em apreço) provocou a lesão fatal na cabeça do regime, a partir de então definitivamente estonteado. Para termos uma visão integrada e histórica do que hoje se passa, temos, pois, que repescar esse acidente como o momento em que a areia da Revolução começa a cair na ampulheta da contagem decrescente. O verdadeiro P.R.E.C., e todo o processo de negação e partilha que ele representa, estende-se até lá. Inclusivamente do ponto de vista da Oposição ou, hoje, da maioria de esquerda, é então, em 1969, que começa o trajecto bifurcado, embora paralelo e chegado, entre comunistas e socialistas. É também então que a ala liberal, hoje social-democrata, se emancipa do regime. É então que outros grupos, outras conotações e outras personalidades aprendem o seu lugar no futuro. De resto, muita gente da classe política actual fez a sua “escola primária” no meio de “bunker” ou do “establishment” marcelista. É curioso, aliás, como no Largo do Carmo, Marcelo Caetano quis trespassar o poder ao general Spínola.
O próprio marcelismo, de resto, não seria nada de autónomo. Forneceria apenas o primeiro campo de afrontamento, um primeiro tempo de passagem, espera e preparação. De certo modo, nele se entreabre a porta de um período de revolução-queda. Queda no sentido em que há a sensação de se ter caído da tal cadeira, de onde se contemplava a História, na própria História que é agora quem nos contempla e a quem nós interrogamos. Queda na História quase como uma criança que não pode aprender a nada, cai à água, e, apesar das bóias, parece que vai se afundando, embora, talvez, porque só na profundidade possa encontrar a força para emergir.
Durante o período marcelista e até ao 25 de Abril, houve um processo de deterioração. Depois houve um processo de negação e erradicação de todos os vestígios da ditadura. Foi, por isso, por excelência a época do antifascismo, de que, porventura, “a lei das organizações fascistas” é o último estertor já póstumo. De certo modo, pode-se admitir, em teoria e imageticamente, que uma certa corporação anticorporativa, mas produzida pelo próprio corporativismo, podia então ter edificado um corporativismo ao contrário. Foi então, de facto, que se geraram e desenvolveram quer um “salazarismo ao contrário”, quer um “marcelismo ao contrário”, este último, de resto, ainda hoje a estrebuchar. Ambos quiseram reproduzir formas já antigas de (in)cultura política, embora camufladas, agora, com outras siglas e cores, segundo a proveitosa consigna “non nova sed nove”. E é até curioso notar como o fracasso deste marcelismo ao contrário permite, por sua vez, renovar, outra vez, em segunda edição, o êxito da velha ala liberal, também ela agora colocada ideologicamente, pelo menos, de um outro lado… ou mesmo outra galáxia ou contexto político.
Há, porém, sinais de esperança, de resto proporcionais aos de ansiedade. É hoje, curiosamente, que começa a rever-se toda a distribuição política, toda a topografia de grupos e personalidades que se fizera em 1969, nesse diferido início do P.R.E.C.. É que à Revolução-queda parece começar a substituir-se uma Revolução-projecto, virada para a construção de uma democracia nova e não apenas para o enterro de um regime morto em 1969, embora apenas sepultado em 1974 e sobrevivente como fantasma até mais tarde. A capacidade de direcção começa a valorizar-se sobre a vocação de luta. As obras começam a ter mais eco do que as palavras. Começa a forjar-se a vontade suficiente para vencer as batalhas ainda pendentes.
Uma coisa é certa: lançados à água, não podemos sair, nem sabemos se haverá quem nos empreste mais bóias e é por isso que não há outro remédio senão aprender a nadar… já.
(in "O Primeiro de Janeiro" de 4 de Novembro de 1978)