sexta-feira, 11 de julho de 2008

O 10 de Junho em Macau

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O nosso império mais real foi o dos mares que não são estanques mas móveis e profundos, e o prémio mais alto cuja atribuição Camões reconheceu aos Portugueses foi o da Ilha dos Amores, aliás toda ela entretecida nas malhas do reino marinho. Vivemos mais do encanto da descoberta que da força do domínio. A beleza é para nós por si só uma paga e não é o império da afirmação que mais conta.
É talvez por isso que o Oriente entende melhor a nossa verdadeira face, como se ele fora o sudário natural da nossa História. Quando um poeta oriental diz que “não é a flor da cerejeira que é bela mas o momento em que vai murchar”, parece-nos surpreender a mesma desinteressada generosidade da beleza como descoberta, aventura e risco que perpassa pela nossa História e melhor se desvenda quando parece que a nossa presença se desvanece. Quando tudo é História, a recompensa parece continuar a ser sobretudo essa.
Era esta já a lição de Camões, o herói do espírito que o 10 de Junho evoca e comemora. Uma lição que não foi apenas a de pensar e escrever em português, mas a do viver em português. Porque, de facto, a cultura portuguesa é, sobretudo, uma cultura da vida, uma cultura da experiência, uma cultura do humano e da experiência humana. A grande obra cultural portuguesa é de um certo tipo de sociedade e a de um certo modo de viver. Melhor o compreendemos hoje forçosamente quando o nosso império são “Os Lusíadas”, um livro afinal, ou, por extensão, uma História e uma Cultura de que os homens são quem resta e assegura o futuro. Hoje, pelo menos, podemos sem nenhuma afectação política, defensiva ou ofensiva. ser por inteiro senhores do Império dessa Cultura e dessa História, ambas, como “Os Lusíadas”, ao mesmo tempo viagem de um povo e viagem de todo o conhecimento humano. (...)
Nós perseguimos como sempre o nosso rasgo de universalismo, o único capaz de nos transportar e para o qual qualquer europeísmo fechado ou incondicional, ainda que integrado, não seria senão uma espécie, ainda que rica, de provincianismo! Mesmo na Europa não podemos ser apenas europeus. Só olhando ecumenicamente nos não tornaremos cegos. O problema, por isso, não é tanto o de nos adaptarmos à Europa, mas o de entrar nela originalmente, isto é, à nossa maneira e com o lastro de universalidade que trazemos. (...)
É claro que o rasgo de universalismo já não aspira a descobrir ou conquistar as terras e os mares, mas sobretudo ao movimento solidário das culturas e ideias, nomeadamente no quadro de uma língua como a nossa. Somos uma cultura europeia, mas, ao mesmo tempo, transeuropeia e só como tal nos podemos incorporar com autonomia na história do tempo presente e, inclusivamente, na história da própria Europa. A nossa língua torna-nos imediatamente transparente uma grande parte do mundo em toda a parte e é sintomático que o que tenha ficado das nossas relações com os novos países independentes de língua portuguesa seja sobretudo um meio de entendimento.
Trocámos justamente um Império por uma ideia mais generosa na vida em comum, tanto na vida interna como na internacional. Mas foi mais uma conversão do que uma troca. Agora a ideia do Império deve converter-se no Império da Ideia, isto é, num país que possa pensar-se e realizar-se a si e à sua história com um sentido idêntico e fecundo, mas na nova história do Futuro. Agora na perspectiva do ser português e não só na de ter Portugal! (...)


(artigo no Diário de Notícias, 20 de junho de 1982)

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Sob o túnel da Alma

Como falar de futebol no dia em que se consuma aquilo que Edgar Morin chamou a primeira “teletragédia planetária”? Sob o rasto apagado das ideologias, escrevia Eduardo Lourenço, antes da morte de Diana no túnel da Alma, que a telenovela era a única “grande narrativa” dos novos tempos. Nessa altura ainda poderíamos pensar, porém, que, além de brejeira, ela se manteria fictícia ou virtual, como, aliás, as anteriores “narrativas” abstractas haviam demonstrado ser, ainda que nalguns casos depois de haverem cruamente devastado meia humanidade.
Agora, depois da morte de Diana, sabe-se que a telenovela é real, pode mesmo ser realmente trágica e está a caminho de fazer história – a mesma sob a qual as “narrativas abstractas” já perderam todas as ilusões. Nestas ocasiões, a vida suspende-se e não admira que, em Inglaterra, o futebol tenha sido adiado. Afinal, o jogo – desportivo, político ou outro – não funciona durante as emoções colectivas ou as revoluções.
A Inglaterra é o país que inventou o futebol e lhe conferiu a aura de desporto do povo. Apesar do estatuto sagrado que daí lhe adveio e que, em princípio, tornaria intocáveis as suas sessões de culto, não lhe poderia passar ao lado a morte da “princesa do povo”, o mesmo (povo) de que também ele (futebol) se tornou espelho. Um minuto de recolhimento só não chega para o silêncio que precede as grandes passagens.
A Imprensa desportiva resistiu ao assunto, é verdade. Eu, porém, à cautela, não. Este tipo de acontecimentos, qual nova “bomba” da sociedade mediática – que, paradoxalmente, é a do total imediatismo –, pode espalhar mais tumultos do que se julga. Pelo menos, tal como as antigas revoluções, levanta a tampa da panela e separa os campos. Desta vez, a tensão é entre a monarquia mediática e a pré-mediática, a do povo e a da aristocracia, mas também é, antes disso, entre a vida privada e os novos poderes da informação – questões que, como as revolucionárias, concernem, ao mesmo tempo e muito profundamente, a instituições e indivíduos. Sob o túnel da Alma será ainda, inevitavelmente, sobretudo uma revolução de consciência.
Entre “paparazzi” e celebridades há, pois, mais do que o acidental. A fotografia é, neste caso, uma revelação muito maior do que a do 6x4. Há já imagens de pelourinho e de cadafalso, para os caricaturistas se vingarem a descrever a situação dos caçadores de fotos, enquanto – também por cá – alguns dos mais despudorados mandaretes do “tiro” jornalístico aproveitam para aparecer na veste de piedosas carpideiras.
Claro que, como é habitual nestas andanças públicas de cena, outras hipocrisias espreitavam. No dia seguinte ao acidente sob o túnel com o sintomático nome de Alma, os tablóides ainda esgotavam. Quanto mais suspeitos mais vendáveis, parecia a lição. Claro que um “dealer” não deixa de ser criminoso por crescer o número dos seus clientes. Ainda não há ratificação democrática dos delitos ou, se se preferir, a sua legitimação pelo mercado.
Mas, afinal, fora o copo do condutor que extravasara! Os pratos da balança ficavam mais equilibrados, mas a nova tensão não ficava mais aliviada. Ainda por cima, ela aparecia entre os caçadores da imagem mais efémera e a instituição (monárquica) suposta ser a da continuidade e resistência aos tempos. No meio, uma “rainha do povo” e princesa dos corações, também ex-mulher de príncipe e namorada de milionário, parecia reunir o mundo todo. Que espaço é que restava para o futebol?
Resta-me desejar que a selecção nacional vença os alemães, se necessário em nome da aliança inglesa, e que Artur Jorge não comece no muro de Berlim o seu “túnel da alma”...

(crónica n'O Jogo, 6 setembro 1997)