terça-feira, 28 de outubro de 2008

Uma Constituição para Portugal (II)


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Ao princípio não “era” o Estado mas o Homem – “era” o Homem, o espírito e o barro... É esta uma verdade em função da qual será o Estado a ter de se humanizar – não o Homem quem tem de se estadualizar...
Se assim for, a questão política número um – constitucional, por excelência – não é a de saber – qual deve ser o Estado? – mas esta outra – Que homem e que tipo e formas exteriores de humanidade queremos e podemos exprimir e realizar através da ordem política?
A questão do Estado não poderá ficar por responder mas tornar-se-á dependente. Consistirá tão-só em apurar – Qual o Estado que permite a esse homem sê-lo, o mais completamente que é possível?

a) Zarpar deste porto e com este rumo é a primeira condição para sair da galáxia do sub-desenvolvimento político.
Reina nesse mundo sediço uma crença apriorística no Estado – ora como sujeito, ora como objecto – sempre transcendente, tornando-se, em qualquer dos casos, causa virtual de idolatria ou, no reverso, de inumanidade.
As raízes da crença aludida podem, de facto, ter duas origens: em primeiro lugar, a contemplação do Estado como uma pessoa ideal, que só se avista ao longe, qual alma penada terrificante, mas que ao perto é apenas o vácuo “embalsamado” em formas jurídicas – concepção idealista (liberal); em segundo lugar, a consideração do Estado como um objecto real, não só objectivo, como posto até contra as pessoas, produzido como detrito das convulsões dialécticas de uma História, por sua vez também, integristicamente objectiva – concepção materialista (anti-liberal).
Quer a primeira sereia, quer o segundo oráculo, têm de “providencializar” o Estado e reclamar, a “ferro e fogo”, a sua “soberania” – de pessoa jurídica, num caso, ou de facto material no outro, a ideia suprema ou o destino irrecorrível, respectivamente. Fundamento e predestinação de Estados basicamente voltados para a luta, a conquista ou a guerra – de defesa ou de agressão – essas teorias comportam, tanto quanto alimentam, um enorme potencial de poder absoluto.
Pôr a soberania como o axioma político da Constituição é, implicitamente, pôr a sujeição do homem antes da auto-determinação do homem – ou considerar a liberdade apenas uma excepção à obediência. Em qualquer dos casos, se a soberania prudentemente mantida de reserva, se torna possessa ou renitente, o mais que nesse contexto se poderia locubrar seria o exorcismo dos velhos “demónios” para aplanar a descida de novos “anjos”... igualmente soberanos... renovando a perpetuação do erro.
Para qualquer das “ideologias” aludidas – negativo e positivo de uma mesma cultura – o Homem é como um retardatário, encontrado contra vontade, de vez em quando e à última hora, isto é – apenas como limite do Estado. O máximo de esforço que essas propostas são capazes de fazer pelo Homem é uma esmola: pedir ao Estado que consinta em ser melhor na “sua” moral (mais humano) ou menor na “sua” extensão (menos desumano).

b) A alternativa que se opõe e supera tais “visões” políticas pressupõe uma “viragem copernicana” na consideração da ordem política. Isto é: a instituição do Homem como centro de gravitação política, reservando aos reais factores constitutivos do Humano a precedência que as culturas políticas “conservadoras” reservavam ao Estado e à sua Constituição.
Se se quiser acabar com o medo como problema político, é pelo Homem e não pelo Estado que tem de se começar. O medo é, de facto, o peso e a sombra de um ente estranho e sobre-humano que nos ladeia e espreita desde a nascença. Ora a verdade é que o Estado só existe depois de pensado, só depois de nós. (...)

("Uma Constituição para Portugal", Coimbra, 1975, p.4-5)

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Regionalização e Europa



A consideração do fenómeno regional na construção europeia passou por várias fases. Podemos destrinçar pelo menos três: a dos anos setenta em que as regiões não existem nos Tratados; a da nova política regional dos anos oitenta até aos anos noventa, em que a política é concebida apenas de acordo com o factor territorial e o factor económico; e a posterior aos anos noventa, com o Tratado de Maastricht nomeadamente, em que as regiões são adoptadas ou integradas na política comunitária, como um factor político e institucional, ainda que modesto, já não apenas como um factor económico e territorial.
E se é duvidoso que a CIG-96 venha já a abrir um novo ciclo neste domínio, travado não só pelo retorno do intergovernamentalismo, como, sobretudo, pela sombra de outras prioridades, a evolução do fenómeno regionalizador continua a enfunar as suas velas. Para muitos, a Europa ofereceria hoje, até, uma espécie de quadro “neo-medieval” em que se progride no topo em termos de uma maior unidade e centralidade política, qual versão democrática dos tempos do Papa e do Imperador, enquanto na base cresce um pluralismo de entidades intermédias, como as Regiões.
Este último escalão permitiria satisfazer, ao mesmo tempo, objectivos da “nova democracia” e do “novo desenvolvimento”, ambos mais próximos, respectivamente, da vontade e das necessidades dos cidadãos. A “ferramenta” institucional da democracia será cada vez mais precisa à defesa da identidade, formas de coesão e estratégias, construídas e afirmadas, subsidiariamente, de baixo para cima e do particular para o geral.
Por um lado, o instrumental jurídico-institucional é hoje considerado prioritário a todos os níveis de desenvolvimento. As debilidades competitivas teriam, muitas vezes, origem mais na falta desses instrumentos de que na escassez de recursos. O direito e a democracia são, a todos os níveis, os primeiros e mais valiosos utensílios para a realização da ambição colectiva. É com eles que procuram equipar-se as “unidades geo-culturais” (P. Häberle) que são as regiões.
Por outro lado, tratar-se-ia de evitar novos absolutismos do geral, propiciados muitas vezes pelos hiatos da construção democrática. É por essa razão que estamos hoje não apenas perante um quadro social plural, mas pluralístico, para o qual o pluralismo já não é só uma realidade mas um valor positivo, activo e querido.
Além disso, é preciso assegurar um continuum entre o local e o global na defesa e promoção do desenvolvimento. Numa economia mundializada, as comunidades infraestatais com suficiente identidade cultural também não prescindem do espírito empresarial nem de vontade política própria. Carecem, por isso, de dimensão e autonomia para serem reconhecidas pelo mercado.
Entre o local e o mundial, a defesa e a comparticipação das várias formas de identidade organiza-se, assim, do modo mais homogéneo e horizontalizado. Por isso, as regiões voltam a procurar um lugar, sobretudo numa Europa onde a respectiva tradição lhes confere um suplemento de força e legitimidade.
A mundialização produz uma fragmentação atomista que ao nível social conduz ao individualismo. A regionalização, vista ela própria como ruptura, é afinal, neste novo cenário, uma forma de combater aquela forma extrema de desagregação dos laços sociais das comunidades intermédias e de estruturar, grau a grau, patamares de formação de unidade social.
Na reorganização das formas políticas que a internacionalização desafia, a regionalização avança, porém, como uma forma de aprendizagem institucional, por isso mesmo reformista, adaptativa e gradual. Tal adaptação tem de ter em conta, nomeadamente, o quadro externo, o qual não pode ser ignorado, neste como em qualquer outro problema político. Mais especificamente, mesmo quando o respectivo direito não é determinante ou imperativo a este propósito, será concerteza óbvio para todos que a União Europeia é a mais relevante moldura desse contexto.
Por um lado, todas as políticas da EU acabam por influir, de uma maneira ou de outra, sobre o território e a sua política de coesão económica, social e inter-regional é cada vez mais solicitada pelos próprios Estados-membros. Por outro lado, o peso da EU no seu conjunto representa o primeiro contraforte de defesa e a primeira alavanca externa das comunidades que a integram – Regiões compreendidas – face aos novos desafios da mundialização.Pode-se, pois, concluir que a construção europeia favorece uma cultura regionalizadora embora não a imponha e só escassamente a integre. Mesmo depois da CIG-96, ela continuará a assentar e a visar uma Europa dos Estados, embora, no terreno, a diferenciação regionalizadora vá continuar a crescer a um ritmo aproximado da integração e, sob esse aspecto, a carecer também de uma paralela atenção e a contribuir para a própria modelação da arquitectura conjunta.

(Regionalização e Europa, UAL, 1996)