segunda-feira, 31 de março de 2008

Portugal e a Europa

Uma relação difícil: quase um problema de identidade

E sobre a relação entre Portugal e a Europa? A primeira sensação é de que a resposta não é simples. Os mais pessimistas acreditam numa desafectação congénita entre ambos. Curiosamente, porém, a dificuldade ou é vista a nosso favor, como resultado de uma espécie de “super-identidade” portuguesa, ou é vista contra nós, qual história do “pote de barro contra o pote de ferro” (António Quadros) e subsequente ameaça de descaracterização lusíada no magma da integração continental. De um lado, há quem ache que uma “grande” história própria circunscreve o nosso destino em si mesmo e não o deixa procurar outros parentescos ou conjugar-se com eles. Do outro lado, pelo contrário, pensa-se que uma “pequena” nação, ao abrir as suas fronteiras, corre o risco de uma invasão pacífica e de uma neutralização ou desistência vital.
Em parte, a preocupação compreende-se e não só por o nosso país ser daqueles que sempre discutiu mais obsessivamente a questão da sua identidade. Primeiro, somos um dos mais velhos países independentes – senão o mais velho – de um continente que já por si se considera “velho” e é composto por um “mosaico” de países entre os mais “idosos” do mundo. Temos mais de oito séculos de independência e há mais de seis séculos temos as mesmas fronteiras – aliás, duramente conquistadas –, o que contrasta de um modo gritante, por exemplo, com uma Europa de Leste, onde a maioria das fronteiras foi imposta por convénios internacionais e, sobretudo, tem menos de um século.
Além disso, somos o país europeu que mais cedo se fez ao largo (1415) e mais tarde regressou a casa (1974-1975). A partida para Ceuta abre um ciclo; a chegada de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Timor encerra outro, e não apenas na nossa história. Sob este aspecto podemo-nos considerar o maior “filho pródigo” do “velho testamento” europeu ou o “novo Ulisses” da sua segunda errância. Continua a prender-nos ao mundo extra-europeu não apenas uma história mas uma língua de quase duzentos milhões de pessoas, que é a quinta língua mundial e tem por isso um peso próprio, como um campo magnético de que fôssemos o pólo. Foi, aliás, o que nos fez sentir e partilhar o grande escritor moçambicano José Craveirinha, quando disse, ao receber o Prémio Camões (1991), que, tal como Pessoa, considerava a língua a sua verdadeira pátria... (...)
Uma língua que é minoritária na Europa está nos primeiros lugares em África ou na América Latina. E se só por dentro de uma língua vamos directamente ao coração das coisas e das pessoas, como que penetrando um segredo, será sempre mais directo o nosso entendimento com um brasileiro, um angolano, um moçambicano, um guineense, um cabo-verdiano, um são-tomense ou um timorense que com europeus de outros países. Entre estes e os primeiros, a diferença seria equivalente à que pode existir entre vizinhos ou parceiros de cultura e profissão, por um lado, e amigos de convivência, ou familiares, por outro. (...)
Evidentemente, Portugal também é um país atlântico, entre a periferia do Norte e a periferia do Sul, ou, se se preferir, entre a “civilização do frio” e a “civilização do trópico” (Alçada Baptista). A nossa atlanticidade é mesmo constituinte. Opõe-nos e diferencia-nos da Espanha, colocada no mesmo meridiano mas muito mais mediterrânica. Enquanto Lisboa é o princípio do mar e desperta forças centrífugas, Madrid é o “núcleo duro” da Meseta ou o centro mais recolhido da Península de onde se podem alimentar as forças centrípetas. (...)
E há também como que uma idiossincrasia própria do provo português e do “ser português”, tal como Teixeira de Pascoais a tentou traduzir numa versão espiritual e sentimental. Ela envolverá, mesmo, para lá da sensibilidade da distância que é a saudade e das suas dimensões mais pessoais e familiares, tonalidades de comportamento político que explicariam, por exemplo, o paradoxo de a nossa história abundar em revoluções e proclamações tão míticas como o “sebastianismo”, mas estas serem tão frouxas quanto abundantes e se entremearem com formas radicais de pragmatismo e fulanização política. O nosso particular humanismo poderia ainda, por sua vez, reclamar-se do recorde histórico na antecipação da eliminação da pena de morte, que hoje, embora ainda aceite na legislação de alguns países, já não é aplicada em nenhum dos Estados membros da Comunidade. E não será também impunemente que o herói nacional é um poeta e o símbolo respectivo um livro de poemas.


No entanto, a nossa cultura é uma cultura europeia

Tudo o que foi invocado nos torna diferentes, mas não é forçosamente nada de antieuropeu, sobretudo numa Europa ainda por cima aberta por excelência, quer para dentro quer para fora. As diferenças agirão, sim, como garantia de não dissolução e “fita de tornesol” da nossa diferença e ânimo competitivo-cultural. Paradoxalmente, o confronto espevitará mesmo a nossa alteridade e o respectivo brio. Dir-se-ia até que a nossa integração cultural europeia começou logo com a derrota de Viriato. Desde então, os povos da área geográfica que hoje constitui o nosso país têm uma cultura “europeia”, se por esta entendermos uma inspiração moral e religiosa cristã; um direito na recta descendência do direito romano e modos de pensar e de ver idênticos aos concebidos originariamente pela velha Grécia. Estes são os mais comuns factores de formação dos Portugueses, no sentido mais vasto da palavra “educação”. Julgo que é isso o que aprendemos e sentimos, sem que tenhamos de estar a pensar à alemã, à francesa, à inglesa, enquanto vamos vivendo “à portuguesa”... (...)
A história portuguesa é, em qualquer caso, história europeia, e “a ideia de Europa articula-se nela” como a ideia de nação (Martim de Albuquerque). (...)
Permanecemos até algumas vezes mais arreigados ao núcleo fundamental da cultura europeia ou fomos menos autocríticos em relação a ela. Talvez por isso chegámos a ser considerados por outros como “a mais europeia das nações” (Reinhold Schneider). Entre nós já se admitiu igualmente que a identidade europeia seria aqui mais “vivamente sentida”, como lugar de fronteira e periferia, e portanto “resultado de constante presença do outro” (José Mattoso).
Dir-se-ia ainda que, por termos “carregado” essa cultura comum através do mundo, ficámos mais presos à sua conservação – uma conservação que, aliás, não é contraditória com a tolerância para fora. As novas vagas do Centro da Europa chegavam aqui refervidas e eram frequentemente rejeitadas como “estrangeiradas”, mas quantas vezes em nome de um europeísmo matricial ou mesmo já vetusto, que simplesmente não se compaginava com o movimento de rupturas sucessivas de uma cultura de risco, interrogação e mudança como a europeia. (...)
É verdade que a nossa grande gesta foi extra-europeia, mas é ainda por isso que, paradoxalmente, se pode dizer que “somos superlativamente europeus porque já o éramos quando a Europa se definia na história do mundo como continente medianeiro” (Eduardo Lourenço). A nossa própria obsessão de identidade é, sob esse aspecto, paralela da mesma procura permanente de si própria pela via da fuga e extroversão que é, também sob vários aspectos, a história europeia.


(excerto de “O Que É – Europa”, de Francisco Lucas Pires, Difusão Cultural, 1992, p.132-140)

sexta-feira, 21 de março de 2008

A Mística do Benfica




Senhor Presidente do Congresso do Benfica
Senhor Presidente da Direcção
Senhores Ex-Presidentes do Benfica presentes
Minhas Senhoras e Meus Senhores


I

Quero antes de mais agradecer à Comissão Organizadora deste Congresso pela honra que me deu de poder aqui proferir um breve testemunho e participar nestes trabalhos. Julgo, aliás, que os organizadores deste Congresso merecem da minha parte, em primeiro lugar, uma viva saudação e aplauso porque demonstraram aquilo que caracteriza os grandes “jogadores” e as grandes “equipas”: um grande “poder de antecipação.” De facto, a mística de que vimos aqui falar está, hoje, diante de nós, nos estádios da Europa, o que, aliás, tornaria dispensáveis a minha eloquência e a de todos os restantes participantes neste Congresso.

Realmente os organizadores deste Congresso foram, em relação aos sucessos actuais do Benfica na campanha europeia, uma espécie de Sãos Joões Baptistas que, de algum modo, empurraram, serviram de alavanca, talvez de rectaguarda, à redescoberta de uma parte das mais importantes desta mística – a europeia, a da ambição extra-fronteiras – que, sem dúvida, foi sempre uma das características desta grande colectividade. Porventura, uma mística é exactamente isso: algo que pode explodir de um momento para o outro, apesar de parecer oculta ou submersa. É algo que se manifesta sobretudo como energia nos momentos mais decisivos de um determinado grupo e da sua História. O sucesso desta proposta da equipe do Senhor João Santos de um “Benfica para a Europa” é não apenas o sucesso dessa equipa mas um sucesso do Benfica no seu conjunto, enquanto colectividade que continua a ter por ambição o máximo que se pode propor a uma colectividade desportiva e futebolística no nosso caso.

Todos nós fomos afinal ultrapassados pela realidade. Qualquer que seja o resultado de Estugarda e procurando falar em nome do sócio comum, mais do que de qualquer ex-dirigente desportivo que também fui, julgo que há realmente um movimento, um estado de alma na vida do Benfica que é positivo e animador quando nos lembramos do recente reacender daquilo que foi crismado, com certeza pelos nossos adversários, de “inferno da Luz”, ou quando pensamos no facto de o Benfica poder gerar uma “peregrinação” de 20 mil portugueses ao que vai ser um dos sacrários da emoção nacional dos próximos tempos: o Estádio de Estugarda no próximo dia 25 de Maio.

No fundo, tudo isto é também para dizer que me seria hoje muito difícil falar da mística do Benfica pois aprendi com a Igreja que o “apostolado do exemplo” é melhor do que o das palavras. Ora o Benfica acaba de dar com o “apostolado” do seu exemplo a ideia de que realmente é um grande embaixador do País. É uma das formas de presença e símbolo de Portugal no mundo para nós todos, em particular, aliás, para os nossos emigrantes que, segundo os dados que puder ler no Jornal do Benfica, irão ocupar, juntamente com as pessoas idas daqui, 70% dos lugares do estádio dessa cidade alemã onde se desenrola este encontro. Tudo isto faz também com que a minha intervenção não seja, como pomposamente lhe foi chamada, uma “comunicação” ou muito menos uma “conferência” mas, muito mais, um “testemunho”, esforçado mas modesto, sobre a importância do Benfica para Portugal nos aspectos internacionais.

II

Tal vocação assenta imediatamente onde devia assentar. Baseia-se nas raízes do Benfica, isto é, nos seus próprios estatutos, na sua própria “Constituição”, aquilo que se poderia chamar a concepção matricial do Clube ou o factor do consenso mais geral entre todos os benfiquistas.

A dimensão “universal” do Sport Lisboa e Benfica resulta, de facto, de normas estatuárias, segundo as quais as filiais, as casas do Benfica, as delegações podem ser constituídas através de todo o mundo. Isso significa, em suma, que o Benfica ele próprio está organizado com “embaixadas” como qualquer organização nacional que prezasse a sua expansão no exterior e que quisesse, no exterior, falar em nome de Portugal. A vantagem destas delegações e destas embaixadas é que elas não custam nada aos contribuintes portugueses e são um acto voluntário e dedicado de pessoas que continuam lá fora a acalentar, através da dedicação ao Benfica, a própria dedicação a Portugal. Além disso, estas embaixadas estão disseminadas por vários continentes, pois há delegações do Benfica e casas do Benfica nos Estados Unidos e no Canadá, mas também na Europa e até na Ásia, em Macau. São, repito, a demonstração de que o Benfica foi pensado desde o início para ser também um Embaixador de Portugal. Seria até interessante acompanhar esta pequena e despretensiosa exposição de um mapa que mostrasse como a geografia do Benfica através do território português e do território europeu e americano também é uma amostra da sua ambição que, excedendo mãe-pátria, serve de cordão umbilical permanente com os portugueses da “diáspora”.

Além dessas delegações , existem “núcleos de benfiquistas” um pouco por toda a parte. Talvez tão importante como isso, os relatos sobre os jogos do Benfica são um factor de consenso nos próprios países que falam português. De facto, eles são ouvidos com a mesma atenção tanto em Luanda, onde governa o MPLA, como na Jamba, onde a UNITA combate. São, portanto, algo que tem a ver com toda a língua portuguesa no seu conjunto e não apenas com uma expressão de Portugal lá fora. O Benfica representa um indesmentível factor de unidade nacional e devo dizer que já uma vez, na ausência do passaporte, o cartão de sócio do Benfica me chegou a servir de passaporte… Tentei utilizar outros cartões aparentemente mais importantes politicamente, mas foi o do Benfica que me ajudou nesse contratempo.

No fundo a própria política encetada por esta direcção parece ter sido encaminhada no bom sentido, na medida em que se preocupou com recrear e dinamizar muitas dessas filiais, ou “casas do Benfica” – porque “casa” tem uma expressão mais familiar e porventura quadra melhor com o próprio tema da mística de que estamos aqui a falar. Ninguém duvidará, aliás, que “casa portuguesa” e “casa do Benfica” serão quase expressões sinónimas. Talvez à expressão “Uma Equipa para a Europa” falte apenas a ideia, o acrescento, de um Clube para o mundo português ou para o mundo dos portugueses, porque essa é também, sem dúvida, um dos patamares simbólicos da expressão benfiquista.

Recentemente fundou-se, por exemplo, a Casa do Benfica no Luxemburgo, promoveu-se um enorme convívio com o Sport Bruxelas e Benfica e tanto quanto sei projecta-se, a curto prazo, a criação das Casas do Benfica do Funchal, Paris e Estugarda. A importância destes clubes é, por vezes, surpreendente, como é o caso do Sport Bruxelas e Benfica fundado em 10 de Junho de 85, mas, apenas dois anos após (1987), campeão belga de futebol Amador e, provavelmente, de novo, este ano, campeão nacional belga dessa categoria. É um Clube que tem sede própria, tem 90% dos seus jogadores portugueses e faz inveja seguramente a tantas associações, inclusivamente empresariais ou outras que buscam ter uma delegação em Bruxelas para melhor fazer valer os seus interesses. O Benfica já tem, digamos assim, uma delegação junto das Comunidades europeias através desta sua delegação e francamente só vejo neste crescimento do Sport Bruxelas e Benfica um problema – o problema do dia em que este Clube possa ser o campeão da Bélgica e dispute a Final da Taça dos Campeões Europeus com o Benfica…

Na recente passagem do Benfica por Bruxelas para o jogo com Anderlecht todos nós fomos então testemunha da dimensão e fervor dos benfiquistas de Bruxelas e eu próprio acabei por ganhar com isso. É que tendo um diário de Lisboa dito que eu estivera presente no jantar de confraternização de benfiquistas, na semana seguinte tornei-me uma das pessoas importantes de Bruxelas para a comunidade portuguesa aí residente. Eu já tinha sido Vice-Presidente do Parlamento Europeu mas esses portugueses não saberiam porventura quem eu era. No entanto, depois de um jornal ter dito que eu era sócio do Benfica e que tinha estado no jantar de confraternização referido, pouco faltou para passar a ter uma pequena estátua na Grand Place… É por isto tudo que o Presidente Adriano Afonso, meu amigo, fez muito bem em saudar os representantes dessas delegações do Benfica aqui presentes, encargo que eu próprio tinha assinalado nos breves apontamentos que tenho aqui à minha frente.

Aliás o Benfica tem outros instrumentos além destes que citei para divulgar o que se pode chamar "cultura" benfiquista e o seu modo de estar, isto é, a atitude cívica e moral e até o estilo que caracteriza os seus, em toda a parte. Este Congresso é, ele próprio, único, ele próprio, também, pelo menos até hoje, impensável, em relação a outras colectividades. Tem ainda o “Jornal do Benfica” e a Revista “O Benfica Ilustrado” de que está aliás na mesa um carismático ex-director, jornal que é sem dúvida um grande elo de aproximação entre todos os benfiquistas e que hoje, dirigido aliás por um amigo meu que não cito para não parecer que pertencemos a uma sociedade de elogio mútuo, tem sem dúvida uma vitalidade excepcional e é um correio cumpridor da necessidade que há numa família de todos saberem o que se passa. Tem, além disso, meios audiovisuais a que, embora ainda não totalmente explorados, a diligência desta direcção e das futuras com certeza se encarregará de dar uma expressão crescente.

III

O Benfica, além disso, tem uma política de cooperação com os países de língua portuguesa. Nada mais nada menos! E parece-me essa uma atitude essencial e muito positiva. O Benfica tem uma tradição neste campo. Alguns dos seus grandes jogadores do passado, como Eusébio ou Coluna, mas tantos outros que marcaram viragens decisivas na importância europeia do nosso futebol nacional são avais dessa vocação de cooperação que não pode ser perdida e, pelo contrário, tem de ser desenvolvida, como aliás também passos recentes atestam. É o caso dos protocolos de cooperação com clubes de Moçambique e Angola; do envio de treinadores e técnicos, no campo da ginástica em particular; da recepção e preparação de atletas através de estágios, como o caso de 5 atletas de uma equipa de Moçambique; da deslocação de equipas, como, recentemente, a equipa de Hóquei do Benfica a um desses países. Tudo isso traduz a ideia de que o Benfica sendo português, sim, pode, ao mesmo tempo, ser uma espécie de multinacional da língua portuguesa. Talvez fosse um conceito possível. Além de uma “Equipa para a Europa” o Benfica, como aliás é vocação da sua cidade-mãe, poderia ser uma espécie de ancoradouro na Europa desportiva do desporto de língua portuguesa. Talvez seja de recordar – e eu recordo sobretudo os jogadores, não apenas por estar mais atento a esse aspecto, mas porque são eles que me são mais lembrados todos os dias em casa pelo único ganho que eu dei ao Benfica até hoje e que são três jovens benfiquistas meus filhos – os brasileiros que animam neste momento de um modo brilhante a equipa do Benfica.

IV

Mas o Benfica foi também pioneiro não apenas destas relações com os países de língua portuguesa, mas da transição europeia de Portugal, quando ainda éramos um Império. Quando ainda não pensávamos na integração europeia, já o Benfica se integrava na Europa ao nível mais alto possível. Já nessa altura o Benfica passava o Adamastor europeu e abria ao País as rotas de uma outra “boa esperança”, a um nível que foi também, sem dúvida, fundador e que está ainda com certeza na memória de todos.

Não admira assim que o Benfica se tenha sempre sentido na Europa, desde então, como um senhor ou, para utilizar ainda uma metáfora marinha dos tempos de outro tipo de aventura, mais atlântica, como o “peixe na água”. Alguns dos momentos mais altos, mais históricos, mais vividos do desporto português desde a Taça Latina em 1950 com o seu apogeu nas vitórias da Taça dos Clubes Campeões Europeus estão directamente ligados ao Benfica. Talvez essa vitória na Taça Latina seja mesmo o primeiro acontecimento desportivo que eu tenho na minha memória pois tinha 6 anos, era já adepto do meu outro clube – a Associação Académica – embora não fosse ainda do Benfica, mas talvez aí tenha tilintado algum do significado que o Benfica tinha para o próprio País no seu conjunto.

Também seria “ensinar o padre nosso ao cura” lembrar-vos que foi o Benfica quem ganhou mais Campeonatos Nacionais e mais Taças de Portugal, quem forneceu mais jogadores à Selecção Nacional, quem fez ouvir mais vezes o Hino Nacional, quem fez desfraldar mais vezes a Bandeira Portuguesa e tudo isto não podia senão gerar uma crescente identificação entre o Benfica e o País. Benfica é, aliás, uma palavra que não se pode traduzir lá fora. Pode-se pronunciar de modo diferente mas a palavra em si é tão portuguesa que é difícil traduzi-la.

Aliás, é por igual difícil “traduzir” os 90 000 sócios que o Benfica tem, porque, salvo erro, é bastante difícil encontrar na Europa e no mundo clubes com 90 000 sócios. Eu estava a ouvir um relato sobre o Benfica numa emissora belga e o locutor falava da “raridade” que é o Benfica ter 90 000 sócios, mas, depois de citar esse número, começava a falar em voz mais baixa como se tivesse medo de um número tão grande. Realmente quando o Benfica vai defrontar um clube que tem um único sócio (que é a Philips) como é o PSV em Estugarda, a desproporção sente-se. Mas afinal nós somos também uma multinacional, mas de língua portuguesa.

Parece por tudo isto que temos algumas razões para acreditar que essa mística pode funcionar quando vamos defrontar um clube (PSV) que tem um estádio de bolso, um daqueles estádios que já foram feitos para a televisão e não para os espectadores, enquanto nós temos um estádio que foi feito para os espectadores e às vezes por isso até recusa a televisão ou a excede. A verdade é que temos talvez aí algumas razões para considerar que esta mística tem sentido e é positiva. O Benfica afinal é ao mesmo tempo muito português mas é por isso que pode ser também mais capaz de representar e combater lá fora, ombro a ombro, par a par com os outros clubes, dos outros países. Há no fundo um culto desportivo dos valores patrióticos e populares portugueses, aqui aliás sublinhado da expressão do meu antecessor nesta tribuna, Dr. José Hermano Saraiva, ao dizer que o Benfica tinha nascido pobre, popular e português. No fundo “Viva Portugal” e “Viva o Benfica”, para quem como eu tem um estatuto meio emigrante, são expressões da identificação própria e comum que dizíamos a seguir uma a outra. Tudo isto faz pensar que as caravanas do Benfica, como esta de Estugarda, são caravanas tipicamente nacionais e que o vermelho deste clube, de facto, não é outro senão o da Bandeira Nacional…

Toda essa saga a que fiz uma pequena alusão, começando na Taça Latina, culminou com a dupla vitória na Taça dos Campeões Europeus. O Estádio da Luz transformou-se então numa Meca do futebol europeu, no palco dos mais brilhantes sucessos desportivos portugueses, aliás, dir-se-ia ironicamente, da mais saudável forma de vida nocturna que os maridos lisboetas podiam oferecer às suas mulheres… Oferecia um verdadeiro espectáculo de luz e de som naturais em tantas noites de beleza, de vibração e de alegria, na altura em que Eusébio e os seus companheiros se tornam nas estrelas das estrelas deixando ignorados em Berna, para os caçadores de autógrafos, outros ídolos que até então eram os maiores do firmamento europeu. Os próprios símbolos do Benfica adquiriram talvez nessa altura novas significações. A Águia passou a significar voar sobre a Europa; o lema de “todos por um, um por todos” passou a significar o próprio consenso do País à volta do Benfica; talvez a “cor” tenha passado a ser um pouco mais a da bandeira e seguramente a alegria de todo o povo português nos seus momentos felizes. De facto, é seguro que quando o Benfica arranca num momento de alegria é mais fácil que todos possamos partilhar esse mesmo sentimento. Atrevia-me quase a dizer que o Benfica adquiriu então o estatuto de “anti-D. Sebastião” porque quando passava a fronteira sempre ganhava mas ao mesmo tempo sempre voltava com a totalidade dos seus jogadores. É isso aliás que continuaremos a esperar de Estugarda, numa altura em que o tudo o que seja ganhar na Europa é sem dúvida um sinal outra vez mais prometedor não apenas para o Benfica mas para todo o País no seu conjunto.

O Benfica terá deixado até então de ser um clube apenas de Lisboa. Era um Clube que tinha em Lisboa o seu aeroporto, o seu estádio, mas era o que tomava mais vezes o avião. Jogava no estrangeiro muitas vezes como se estivesse a jogar em casa, porque se tornaram familiares as cenas em que os portugueses dispensavam o regresso a Portugal cada vez que o Benfica jogava no estrangeiro. Foi bonito aliás outro dia ver a manifestação feita no Porto quando o Benfica ganhou aqui a passagem à final. No Porto há com certeza muitos benfiquistas mas seguramente essa manifestação tinha um carácter para lá do próprio benfiquismo. Aliás, é bonito pensarmos que, pela segunda vez, primeiro através do Norte e do Porto, agora através do Sul, mas do País no seu conjunto, sem dúvida, Portugal demonstra esta aptidão para o novo jogo europeu em que estamos envolvidos. E até me permitia acrescentar que no futebol como nos outros desafios europeus em que estamos envolvidos o mais difícil é a primeira e a segunda eliminatória. Se nós passamos a primeira e a segunda eliminatória com o Porto e o Benfica o ano passado e este ano, isso é, sem dúvida, um grande empurrão para que, quando termine a outra segunda eliminatória em 1992, nos campos da economia, da política e do progresso social nós sejamos também capazes de passar a um outro tipo de final.

Em geral o Benfica foi e continuará a ser um viático da saudade portuguesa para os nossos emigrantes, mas sobretudo uma agulha enorme desta teia de portugalidade que todos nós continuamos a tecer todos os dias. Temos até a sensação de que para onde quer que vamos o Benfica não acaba. Eu já estive no extremo do Egipto a 900 km da nascente do Rio Nilo e lá ouvi falar no Benfica. A primeira vez que visitei a Basílica de S. Pedro vi num portão enorme de bronze um emblema do Benfica com o nome do clube escrito por baixo. Todos vocês sabem o que significa de calor próprio, quando, viajando pelo estrangeiro, mesmo a fazer turismo, não deixamos de nos sentir sozinhos e achar confortável encontrar os símbolos que nos falam do próprio País.

O Benfica tem crescido, pois, numa identificação crescentemente perfeita com aquilo que seria o seu maior objectivo, a defesa da permanência e do aperfeiçoamento do homem português ele próprio “ecuménico” na sua vocação, ele próprio com necessidade de resolver esta claustrofobia que é ter uma única fronteira com a Espanha e de a passar e de a vencer no sentido mais expressivo da expressão. Às portas da final de Estugarda só não vou falar mais desta mística para não a gastar. Ela será mesmo mais precisa em Estugarda do que aqui. A mística é que permite ganhar inclusivamente quando não se é o favorito. Ela ajuda a agigantar as dimensões dos que parecem mais pequenos à partida. Ela arrasta mesmo os que não gostam de futebol, ou os que não são do Benfica.

Ter uma mística é ainda ter um estilo próprio, talvez felino e criativo, mas sobretudo ter a segurança que dão uma classe e uma tradição que permitem enfrentar as circunstâncias mais difíceis e neste caso o ambiente de uma final, com aquilo que também se diz do vinho do Porto que é que quanto mais velho melhor é. Lá fora é importante que o Benfica continue a ser um dos nossos emblemas de vitória. Feliz ou infelizmente temos alguns emblemas mas nem todos de vitória. Precisamos cada vez mais de emblemas de vitória e nós que vivemos e trabalhamos lá fora procurando também agigantar o nome do nosso País sabemos quanto isso vale. O Benfica conseguiu já este milagre num ano em que o alargamento, por exemplo, da primeira divisão para 20 clubes não facilitava a internacionalização do futebol português, mas no seu próprio comportamento interno e externo e no contraste entre ambos ele mostra como a representação do País foi mais importante para ele do que o próprio sucesso interno. A sua experiência esta época demonstra como se agiganta mais facilmente quando não é apenas o seu nome que está em causa mas o nome do próprio País comum.

Acredito que estamos a abrir agora uma espécie de segunda dinastia europeia do Benfica e que a Luz voltará a ser um dos grandes pontos de encontro do futebol europeu. Há condições para isso e contamos com Estugarda como uma terra prometida do desporto português. Já houve aí um golo famoso da Rosa Mota e temos o direito de esperar que, mais uma vez, à portuguesa, não haja duas sem três…

A Europa constrói-se também através do desporto. Não é apenas uma solidariedade de países e de regiões. É também uma solidariedade e uma competição de homens de desporto e o Benfica, que é um elemento da mística nacional, poderá vir a ser, se é que não é já, também um factor da própria mística europeia em cuja construção estamos implicados. Espero pois que esta final seja mais um elo da arrancada europeia do Benfica e de Portugal e um elo do Benfica e de Portugal na construção em que ambos estão empenhados. Viva o Benfica e Viva Portugal.

(Discurso proferido de improviso, a partir de curtas notas escritas, no I Congresso do Sport Lisboa e Benfica, em 1989)

quinta-feira, 20 de março de 2008

Rever a Constituição: porquê?


1. Na última revisão da Constituição, o sensível aumento de poderes do Parlamento e a extinção dos poderes do Conselho da Revolução não foram acompanhados, como seria lógico, de um correspondente alargamento da autonomia da sociedade civil e da liberdade empresarial. Extinguiu-se o garante revolucionário, mas manteve-se o princípio das “conquistas irreversíveis da Revolução”. Acentuou-se o pendor parlamentarista e civil, mas sem reforçar as bases económicas deste. A revisão por quatro quintos da Constituição económica seria assim o modo de conseguir um equilíbrio, sem o qual o funcionamento da Democracia e do Regime ainda estarão mais ameaçados. No fundo é como se se tratasse de completar a revisão feita o ano passado, criando uma maior coerência entre a constituição política (muito revista) e a constituição económica (pouco revista).
2. Tem-se também constatado que o enorme sector público criado pelo 11 de Março acumulou grandes défices, pesa fortemente no nosso endividamento e está descapitalizado. Com a agravante, porém, de que, a partir de agora, não é mais suportável continuar a recorrer aos aumentos dos preços e dos impostos para financiar situações de saldo repetidamente negativo.
Os últimos impostos, por exemplo, mostram que se está à beira de cair no delírio fiscal. (...)
A solução é outra. De facto, é geralmente reconhecido, como aliás o afirmava na sua edição de 5 de Setembro o influente e insuspeito diário espanhol “El País”, que o sector público é o principal responsável da crise económica portuguesa. (...)
3. O acordo com o Fundo Monetário Internacional impõe, de resto, condições às empresas públicas e intervencionadas que podem determinar a necessidade de despedimentos maciços, se não até, nos casos mais gravosos, de encerramento das próprias empresas.
O conjunto do sector público deixou de oferecer segurança e independência para os seus trabalhadores (o que, em teoria, poderia ter representado, no passado, a sua vantagem) e para salvar tais empresas e empregos pode agora ter de se sacrificar o seu carácter público e admitir a sua transformação noutras formas, mistas ou privadas. Pode mesmo dizer-se: o sector público, criado ou dilatado pela Revolução, tornou-se uma ameaça para os trabalhadores portugueses.
Não se conhece, aliás, nenhuma outra política alternativa global, proposta para salvar e relançar o sector público como tal e apresentada pelo Governo ou pelas forças partidárias que nisso, ideologicamente, mais poderiam estar interessadas. E é por isso que, como sempre entre nós, o adiamento pode prevalecer à espera que soluções do tipo do naufrágio do “Titanic” possam vir a acontecer sem culpas de ninguém – dir-se-á então – e com toda a “orquestra” da distracção política ainda a tocar.
4. Não se trata apenas de um problema de emprego. São também as desigualdades crescentes no sector público que começam a tornar-se insuportáveis. O leque delas vai desde o privilégio para uns, até ao desemprego para outros. São também as conquistas sociais que estão ameaçadas pelo peso do actual sector público. E a manutenção dos esquemas de distribuição social pode exigir e justificar também a “dessocialização” ou “desnacionalização” dos esquemas de produção económica. O essencial está no bem-estar e na sua preservação. Não no modo como se chega lá. O modo de “distribuição” é mais eficaz com um modo de “produção” mais eficaz, mesmo que este seja de outra natureza.
(...)
6. Há ainda motivos para pensar que a dimensão e inércia das estruturas do sector público está a tornar a alternância democrática em parte ineficaz e explica que esta não tenha sido capaz de resolver os problemas. E que as zonas do poder efectivo subsistem inalteradas, através do sector público, apesar das mudanças de maioria.
Estamos, aliás, a constatar quanto, no quadro económico existente, se depende do Estado. É uma dependência brutal, a que consiste em o Governo comandar quase todos os preços e é claro que isso resulta da própria omnipresença económica e financeira do Estado e do sector público. A crise súbita, que nos acorda e sacode diariamente, com decisões pesadas e surpreendentes, mostra até que ponto é preciso aliviar esta dependência e construir uma economia ligada à nossa liberdade e à nossa natureza.
Começa a entender-se, facilmente, à vista desarmada, que seria mais fácil às instâncias democráticas controlar e dominar os abusos e a eventual corrupção do poder económico privado do que os de um intocável sector público. A simples intocabilidade pode transformar os vícios em virtudes.
A dependência do poder económico em relação ao político está sempre assegurada em Democracia e, em qualquer caso, é contraditório que, para manter um sector público em nome desse princípio, tenhamos de, regularmente, fazer acordos de dependência e controlo da situação do País por parte dos organismos financeiros internacionais. O que é preciso em Portugal não é diminuir o poder económico privado. o que é preciso é aumentar e solidarizar o poder político democrático, para o qual, justamente, o sector público que existe se torna um peso e não uma garantia. Ou será que os governos chegarão a estar dispostos a vender o ouro e entregar as bases militares, mas por capricho revolucionário (que contradição nos termos) terão de continuar a manter as conquistas irreversíveis e a limitar a iniciativa privada?
7. É neste quadro, subitamente tornado mais consciente e evidente pelo acordo celebrado com o FMI, que parece adequado propor a revisão da parte económica da Constituição, de modo a tornar possível, nomeadamente, a participação privada e social no capital das principais empresas públicas do País. (...)
O primeiro acordo com o Fundo poderia ser visto ainda como consequência apenas de desajustamentos, erros e distorções conjunturais. O segundo vai mais longe e indica claramente que o epicentro da crise está no sector público.
A questão da consciência está resolvida. O problema é o de tirar ou não as consequências disso e evitar que o sistema nos lance de novo, mais tarde, a caminho do terceiro acordo com o FMI, num patamar sucessivamente mais baixo e restritivo de negociações. O acordo com o FMI só é plenamente útil se não ajudar a esconder que a crise é do sistema. De outro modo, será uma desculpa bem a propósito para o Partido Socialista e, após “pausa” do “rigor”, poder-se-á relançar uma política socialista de mais gastos.
8. Tudo leva a crer (e constituiria uma perigosa forma de cegueira não o ver) que é o próprio modelo e a própria filosofia da acção económica que estão em causa, não sendo de modo nenhum suficiente para resolver a crise aumentar as condições de consenso social à volta do referido sistema – pretensão que, aliás, todos os dias se demonstra mais inviável – ou aumentar a autoridade burocrática sobre o mesmo sistema, comprimindo e restringindo o seu laxismo natural.
De nada servirá continuar a combater um fogo, repetido e sempre ampliado, com raminhos de giestas... E seria extraordinário que, falando-se tanto de crise e dando-se desta a mais vasta ideia possível, a mesma não suscitasse nenhuma revisão de fundo no quadro económico português. Parece, de resto, óbvio que o reequilíbrio global do sistema só pode ter a sua base na própria Constituição, que desde o princípio sempre foi colocada nesse ponto e nessa função. Se a crise é tão grave como se diz, mais uma razão para começar aí e já. (...)
O ideal é que a reforma económica tivesse precedido e prevenido a crise. Não tendo isso sido possível (é fácil reconhecer os culpados), ao menos que tal reforma seja contemporânea da grande crise instalada. O único problema está em saber quem, dos quatro quintos democráticos do Parlamento, recusa a ideia de que há uma crise institucional da economia? (...)
A verdade é que o sector público e a lógica socialista vêm funcionando em pura perda desde 1975 – e os “elefantes brancos” mesmo desde antes do 25 de Abril como, aliás, era recentemente reconhecido numa discutida nota do Ministério das Finanças sobre o acordo com o FMI. Seria lógico supor-se, a partir daí, que as crises do sistema não são apenas resultantes da avaria intermitente dos fusíveis...
9. Julgamos também que só assim se poderá criar uma verdadeira economia mista, capaz de assegurar a solidariedade entre a Sociedade e o Estado e de realizar os valores morais e sociais de fraternidade e ultrapassagem comum da crise estrutural da economia portuguesa.
Não se trata, com efeito, de obrigar as empresas públicas a transformarem-se em privadas. Trata-se de revogar o impedimento de uma maior cooperação entre o sector público e o privado e de uma integração activa dos cidadãos na vida das empresas públicas. É esse alheamento obrigatório que torna as “conquistas irreversíveis” em depósito de uma revolução parada, sem capacidade de adaptação e sem ligação ao movimento real das aspirações e interesses colectivos no dia-a-dia.
Nem sempre, aliás, a privatização ou outra forma de desestatização do sector público convirá muitas vezes às empresas privadas existentes. Imagine-se (e não é preciso) um aumento dos adubos de mais de oitenta por cento, determinado pela necessidade de diminuir os custos da empresa pública que os produz. Quanto ganhará com isso a empresa privada concorrente que produz para o mesmo mercado e vai beneficiar também dos novos preços? Não é verdade que a esta empresa privada lhe conviria sempre a manutenção de outra empresa pública para levar o Governo a subir os preços do mesmo produto que também vende?
Trata-se, pois, de apenas de repor um equilíbrio e de ver o país normalmente em democracia, com mais liberdade e com menos medo. Manter factores revolucionários para lá do seu papel histórico é incubar factores contra-revolucionários, a pouco e pouco. A demasiada persistência da revolução só pode facilitar o trabalho da contra-revolução.
Começa a sentir-se que a única base de legitimidade do Regime é a Democracia. Só isso lhe é essencial, só isso une toda a gente, só isso pode evitar que a nossa Democracia continue, como na Ditadura, a viver do mito das finanças públicas como sustentação do Estado, dos cidadãos, das empresas e das instituições intermédias.
Seria este o objectivo prático da revisão proposta: na véspera da próxima eleição presidencial consagrar a Democracia como única senhora de legitimidade do Regime!

(artigo no Diário de Notícias, 30 de setembro de 1983)

terça-feira, 11 de março de 2008

Debates Parlamentares: Suspensão da Lei da Reforma Agrária (1976)



O Sr. Presidente: - Está reaberta a sessão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Lucas Pires.
O Sr. Lucas Pires (CDS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O pedido de suspensão da lei das expropriações proposto pelo meu partido tem levantado alguns engulhos, pelo que não será excessivo voltar a perguntar: porquê este pedido de suspensão?
A resposta é simples. Quando Lopes Cardoso perguntava: "Prosseguir como, prosseguir em que sentido, prosseguir quando?", estava ele próprio a responder a esta pergunta.
Quando o PSD pede um livro branco e Ribeiro Telles um referendo sobre a Reforma Agrária, a que corresponderá também todo este clamor senão a um estado psíquico de inquietação, a um estado intelectual de perplexidade, a um estado económico de pânico e, em resumo, a um estado político de suspensão?
O que o CDS traz aqui é a voz de um grande rumor colectivo que quer saber se há ou não em Portugal uma vontade política deliberada e maioritária que o País possa responsabilizar por esta Reforma Agrária.
Em suma: perante esta Reforma Agrária, deve este país ser o reformado ou o reformador?
Sejam quais forem os resultados deste debate, o Governo, os partidos e o País só terão a beneficiar com a clarificação emergente. Qualquer que seja a escolha, ela ficará desde logo crismada com a autoridade de decisão democrática e este país deixará de ser objecto para passar a ser sujeito da sua própria vontade política.
Este avanço e esta clarificação supõem, porém, uma atitude desinibida e disponível. É preciso que se aceite que esta não é a única possível Reforma Agrária ou que se aceite, pelo menos, uma reforma da Reforma Agrária.
Uma voz do CDS: - Muito bem!
O Orador: - Defender o carácter dogmático e irreversível desta Reforma Agrária seria o mesmo que pôr a Revolução para trás, enquanto nós, contemplativos, nos púnhamos de costas para o futuro, a fotografá-la ou a esculpi-la. Tal tique passadista seria, além do mais, perigoso. É que a democracia não é só uma correlação de forças. Ela exige também uma correlação de tempos em que o futuro valha sempre mais do que o passado. Historicamente foi ela a ponte pela qual a Humanidade passou da história do passado - ou da repetição - à história do futuro e da invenção. Infelizmente, tal ponte é levadiça. Por isso é sempre um risco para a democracia entronizar vacas sagradas e para nós, portugueses, neste momento, a prevenção contra elas é tanto mais necessária quanto é certo que elas vêm normalmente atrás das vacas magras... De resto, é uma sintomática curiosidade que seja a esquerda marxista a pôr as fórmulas jurídicas da Reforma Agrária como condição e limite do desenvolvimento futuro das forças produtivas e das relações de produção. É caso para perguntar: quem é que tem o futuro atrás de si? Não haverá ainda nesta teimosia anti-reformista contra a lei das expropriações o espírito da "muralha de aço"? Quantas vezes não persistirá ainda entre nós o "complexo das barricadas"? Certa esquerda pode querer utilizar a Reforma Agrária como a barricada institucional, isto é, como a permanência organizada e normalizada do 28 de Setembro e do 11 de Março.
O Sr. Vítor (Louro (PCP): - Foi a CAP que ameaçou, Sr. Deputado.
O Orador: - Há nisso tudo a renitência em passar do antifascismo ao pós-fascismo, em passar da Reforma Agrária antifascista à Reforma Agrária democrática.
(Aplausos do CDS)
Enquanto essa passagem se não fizer, o futuro estará sempre por vir e o passado estará sempre para chegar. Quem é que pode ter medo da democracia nestas condições? Invoca-se, porém, a Constituição para sacralizar esta lei. Constitucionalidade de uma lei é uma coisa, irrevogabilidade é outra. Nem as constituições têm a unção de eternidade, quanto mais as leis ordinárias. É evidente que estou a supor que ninguém se atreverá nesta Sala a considerar que as normas da lei de expropriações são normas constitucionais. A maioria desta Assembleia não pode, pois, esconder-se atrás desse biombo da constitucionalidade. É diante de nós todos que ela há-de ficar nua. De resto, constitucional ou não, nunca esta lei se eximirá à evidência garrafal nos anais da patologia jurídica dos países civilizados, no século e no espaço civilizado em que vivemos. Vejamos:

a) Teve uma origem cupulista, nascendo de um Governo Provisório, que acabou por funcionar irregularmente como poder constituinte, à revelia do Programa do MFA, que não impunha nem previa qualquer norma constitucional neste domínio;

b) Esta lei foi essencialmente um instrumento de alteração das relações de força política e foi sempre - como força de ocupação primeiro, militar depois, de inércia por último - que sempre valeu e foi executada e garantida; nunca o foi, primacialmente, como direito e justiça;

c) Esta lei não só não teve nenhum destinatário cumpridor, como, além disso, a própria Administração infringiu, na sua aplicação, normas constitucionais tão elementares como a do princípio da legalidade;

d) Esta lei disparou e protegeu a criação de um ghetto territorial onde o diálogo e a propaganda concorrencial da democracia são permanentemente problemáticas;

e) É uma Reforma Agrária parcial, e não apenas no sentido geográfico, pois é obscura a respeito de problemas democraticamente fundamentais, como, por exemplo, o das obrigações das unidades colectivas de produção perante o Estado ou o do estatuto e das garantias de democracia interna dessas unidades;

f) Tal como nos países do Leste, pagaram-se as expropriações com uma promessa legal de indemnização que não foi cumprida e cujo prazo expirou, de tal modo que tal lei se denega a si própria como lei de expropriações, prestando-se a ser configurada, sim, como ordem de confisco. A inexistência de qualquer contraprestação, ainda que simbólica, faz com que não se possa também pensar em transferência ou em aquisição de propriedade, na qual não deixará, pois, de se reflectir um estatuto psico-social de res nullius, com as consequências económicas daí decorrentes;

g) A lei fixa um critério qualitativo do limite de expropriação - 50 000 pontos - que é contraditório com a noção quantitativa e territorial de latifúndio e faz cair na sua alçada pequenos e médios agricultores que vivem à beira da subsistência, que, portanto, nunca poderão ter sido, como a lei supõe, suportes do fascismo;

h) A manutenção da lei infringe a relação constitucional que associa Plano e Reforma Agrária, pois agora é esta Reforma que condiciona o Plano, retirando-lhe a liberdade e a globalidade a que ele não podia deixar de aspirar;

i) Esta lei confessa-se ditada por puras motivações políticas: a remoção dos esteios do fascismo no Alentejo. Este problema está hoje resolvido. Parece que será por isso a altura de a corrigir ou reelaborar, de modo a atender e mesmo privilegiar os restantes objectivos constitucionais - nomeadamente económicos - até agora por realizar.

Em suma, esta lei foi das expressões mais aprimoradas da chamada legalidade revolucionária e a sua manutenção tal e qual não é compatível com um regime de legalidade democrática.
O que se pretende, porém, é boiar essa lei através de um terceiro critério de legalidade, a legalidade socialista.
A verdade é, porém, que também esta legalidade socialista não reconhece que direito e justiça só o são as normas do imperativo categórico colectivo, democraticamente definido.
Também para esta legalidade socialista o direito, a justiça e a vontade democrática são tratados apenas como tapetes rolantes que transportam as massas para a solução final socialista. Isto é, a legalidade socialista não é um tertium genus e acaba por ser apenas a mudança da legalidade revolucionária da rua para o palácio...
Sem o advento definitivo da legalidade democrática, sem a superação definitiva da legalidade socialista, não será possível ultrapassar o pingue-pongue institucionalizado entre Beja e Rio Maior ou, pelo menos, torná-lo menos importante do que a deliberação desta Câmara. A não ser assim, a questão continuará na rua, apesar da passagem episódica por esta Assembleia.
Enquanto isso não acontecer teremos, de facto, uma zona expropriada do País, onde, de acordo com Lenine, o partido está acima do Estado, enquanto no resto do País se aglomeram e reúnem as múltiplas formas de desenvolvimento integrado e criativo das sociedades democráticas.
Sem legalidade democrática da Reforma Agrária, é inevitável que se mantenha e desenvolva uma tensão entre a zona da Reforma Agrária e o novo espírito crescente de contra-Reforma Agrária, alimentando a primeira um colectivismo crescente e empertigando a segunda o espírito da propriedade privada.
Ao imobilismo da repetição natural da Natureza foi juntar-se no Alentejo o imobilismo das formas estatistas. É devido a essa junção que a estatização da agricultura, ou o seu controle político directo, é a mais superconservadora de todas as formas estatistas.
O estatismo arrasta à monocultura física e, reflexamente, à ideológica, pois sabe-se que é no domínio totalitário do homem sobre a Natureza que radica o fundamento do mais totalitário domínio do homem sobre o homem. A monocultura é não só a cultura ideal do deserto, onde, como se sabe, só irrompem sempre formas tirânicas de poder, como, além disso, o húmus de uma agricultura, não de camponeses, mas de máquinas e mecânicos, cuja vocação aponta para a completa destruição do equilíbrio entre o homem e a terra.
De resto, e para maior lástima, este estatismo não custa nada aos estatistas. Não tem de se pagar a si mesmo. É o Estado burguês que lhes enche as algibeiras e lhes aquece as castas. Por um lado, os estímulos materiais por ela distribuídos são anteriores, gerais, generalizados, constantes e independentes da produção e, por outro lado, não há regime de entregas obrigatórias para as unidades colectivas ou outro que traduza as responsabilidades de cada unidade colectiva. É que, ao contrário dos países do Leste, em que a Reforma Agrária foi contemporânea ou posterior da expropriação do próprio Estado pelo partido, aqui ela conta ainda com o antepassado Estado providencial da "burguesia"... É este que está a produzir e a proteger os rendimentos infundados, fazendo jus ao epíteto de capitalista...
Ao seu benemérito a Reforma Agrária não tem de pagar senão um pequeno tributo. O tributo é o respeito de pequenos enclaves de propriedade privada. A propriedade privada que é aí apenas autorizada, mas implicitamente é considerada ilegítima. A sua função é apenas acessória da propriedade colectiva. Tal como as parcelas complementares das unidades de produção no Leste, essa propriedade privada só serve quer para dar uma aparência de intrínseca democraticidade, quer para estabilizar o sistema da economia colectiva sempre que este entra em panne.
Neste contexto, completamente irradiado do patronato, parece que os sindicatos não teriam muito para fazer.
Porquê então se queixa Mário Soares do excesso de poder dos sindicatos agrícolas?
A verdade é que Mário Soares é injusto e contraditório. O comportamento destes sindicatos não é senão, de facto, o expoente mais extremo e mais caricatural da situação de quase todo o sindicalismo em Portugal. Numa economia estatizada a 70% é evidente que os sindicatos deixam de representar interesses económicos e sociais face a outros interesses económicos e sociais, para investirem directamente na área de acção do Estado e na área política em geral como forças de vontade unilateral. A estatização da economia leva-os da trama produtiva e dialéctica privada para a trama política, comportando-se os dirigentes como representantes de trabalhadores-funcionários, com a noção desperta, até, dos próprios valores hierárquicos da Administração. Por isso não admira que, desligados do movimento dos interesses na economia de mercado, muitos sindicatos se comportem irracionalmente, do ponto de vista económico. Daí também que, do ponto de vista político, esses sindicatos sejam dominados pelos partidos de Estado, aqueles que, à boa ou à má fila, preferiram identificar-se mais com o Estado socialista do que com a sociedade democrática.
É aliás o carácter necessariamente político do tipo de intervenção sindical que faz das relações do Governo com os sindicatos - e não apenas no Alentejo - um problema dramático, que só comporta esta alternativa: torná-los dóceis através de uma central sindical afecta ou tê-los por inimigos de princípio e que não dão tréguas.
De resto, para lá da Reforma Agrária há mais país pré-democrático e antidemocrático ainda subsistente.
É talvez porque a democracia entre nós é sempre entendida mais como complacência do que como decisão. Para ocupar esse vazio de força e decisão democrática colectiva, ainda em plena democracia, é que aparecem pressurosas forças partidárias que pensam em termos de revolução e mesmo promovem a revolução na democracia, na falha de uma democracia revolucionária capaz de se impor e institucionalizar, perante os seus próprios componentes, como entidade que está mais além e mais acima.
A iniciativa do CDS integra-se, por isso, num conjunto de outras que querem restituir esta altura e esta dimensão à democracia portuguesa. Também o pedido de suspensão da Lei do Serviço Cívico visa, por exemplo, um saneamento democrático e maioritário em prol da completa desgonçalvização da vida política.
Foi-se Vasco Gonçalves, mas ficaram as leis e as estruturas do gonçalvismo. É que as bandeiras só são precisas para abrir caminho, não para caminhar. E, no entanto, pergunta-se: poderá fazer-se uma democracia com restos de ditadura? Esses restos estão imersos, mas, enquanto esperam por voltar à tona, engasgam toda a expressão democrática e pretendem transformar até essa mesma democracia num gigantesco caldinho de ópio popular e ilusão, impedindo, porém, o seu funcionamento como critério de desenvolvimento em igualdade e liberdade.
O antigonçalvismo foi -- afinal bem pouco. Apeou a estátua, mas deixou ficar o pedestal. Parece, à distância, ter sido apenas a aplicação da teoria do bode expiatório, afastado pela pressa de outro poder pessoal, mais do que pela necessidade de outro critério de Governo.
Já antes se havia utilizado processo semelhante: as pessoas haviam sido substituídas, mas o aparelho do Estado continuava quase o mesmo, provado que fora durante quarenta e oito anos que serviu também à direcção colectiva de cima para baixo.
Aliás, também agora, quando se diz que Lopes Cardoso sai mas que a sua política, essa, vai continuar, é a uma nova ressurreição da teoria do bode expiatório que se está a assistir. Tudo isto produto de uma concepção arcaica e teológica, nos termos da qual o mal, em política, também tem por portador um demónio pessoal, sendo o problema político um ritual de permanentes exorcismos.
É duplamente simbólico que, tal como com a colonização, por um lado, tal como no princípio da nacionalidade, por outro, hoje, com esta Reforma Agrária, volte a ter sentido a noção de além-Tejo - além-Tejo contraposto a aquém-Tejo.
É um neocorporativismo político-territorial e este neocorporativismo político-territorial não é o único. A princípio fora a revolução contra a reacção. Ainda há pouco ouvimos pôr o Conselho da Revolução para um lado e os órgãos da democracia para o outro. E já estamos habituados a palavras e impostos para a direita e o sector privado e a créditos e acções para a esquerda e o sector público, tudo, aliás, numa perspectiva que deve ser a interpretação sui generis da coexistência concorrencial entre o sector público e o sector privado...
(Risos.)
O Sr. Presidente: - Chamo a atenção do Sr. Deputado para o facto de que tem dois minutos para terminar a sua intervenção.
O Orador: - Muito obrigado, Sr. Presidente.
Mas é sobretudo sintomático que tenhamos, de um lado, o socialismo original, que se deixa pendurar, com todo o seu anafado corpo, de um empréstimo da maior potência capitalista mundial e, do outro lado, na zona desta Reforma Agrária, um socialismo de reprise, cujo maior crédito são as doações de máquinas da maior potência comunista mundial.
Parece o complexo de Tordesilhas voltado contra nós. Quando já não dividimos o Mundo, eis que fazemos que nos passe pelo meio o risco mais fundo e desirmanador que separa entre si os terrestres.
É como se nos tivessem feito engolir o Tratado de Tordesilhas. As Tordesilhas da impotência, depois das Tordesilhas do Poder. Eis, pois, o momento de evitar que o fim do ciclo do império se torne no "princípio do ciclo da colónia".
O cúmulo da angústia seria, de facto, que estivéssemos a passar do capitalismo subordinado que éramos para um socialismo, além disso, subornado. Não será contraditório que nos libertem tornando-nos proletários, ao mesmo tempo, do império socialista e do império capitalista? Não somos um país satélite, mas somos, afinal, um país duplamente satélite. Quem negará que um programa como o nosso, assente na mobilização de todas as energias de liberdade e criação dos Portugueses, poderia erguer melhor a independência, a dignidade e o orgulho de Portugal?
É também para combater contra este empate interno e essa sujeição externa que o CDS pediu a suspensão da Lei da Reforma Agrária.
É essa uma das condições da completa libertação económica e política da iniciativa democrática no nosso país. A verdade é que nos próprios países do Leste a Reforma Agrária evolui e continua a evoluir. É incompreensível que se possa pensar que o Estado manda agora menos no Alentejo do que mandava antes. Aberto o caminho é que se pode caminhar no sentido de uma reforma da Reforma Agrária, agora que ele é aí o único patrão. É agora até, e porventura só agora, que ele pode pôr todo o seu poder ao serviço da libertação e da riqueza dos homens que aí nasceram e vivem, os homens a quem os dramas anteriores e actuais levaram a tomar a sua terra como toda a terra e, mesmo nalguma maneira, como um inferno e um céu. Para que estes se libertem das doses de medo e de ilusão que essa experiência comporta é preciso que nós dêmos o exemplo da coragem democrática perante esta lei das expropriações.
Se, pensando nos homens do Alentejo e escutando as suas queixas e as suas divergências, subsistisse no nosso espírito algum resto de divisão íntima, não seria essa divisão motivo de fraqueza espiritual, porque nós sabemos o que ela significa.
Não à reforma agrária gonçalvista, sim à reforma agrária democrática.
(Aplausos do CDS)
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vital Moreira para pedidos de esclarecimento.
O Sr. Vital Moreira (PCP): - Sr. Deputado: Eu temo que a sanha contra a Reforma Agrária de que se mostra possesso, a pressa com que leu o papel que trazia e a linguagem esotérica que utilizou não tenham permitido...
O Sr. Amaro da Costa (CDS): - Não percebeu?
O Orador: -... a todos os presentes perceber integralmente o sentido da sua intervenção.
O Sr. Amaro da Costa (CDS): - Já calculávamos!
O Orador: - Por isso eu queria fazer apenas dois pedidos de esclarecimento. Primeiro, desejava saber quando é que o CDS propõe aqui a lei suspendendo a Constituição; depois, pergunto quando é que o CDS propõe aqui um projecto de lei revogando o 25 de Abril.
(Risos)
O Sr. Amaro da Costa (CDS): - Provocação torpe!
O Sr. Manuel Gusmão (PCP): - Sentem-se mal, Srs. Deputados?
O Sr. Presidente: - Ninguém mais pede a palavra para pedidos de esclarecimento?
Tem a palavra o Sr. Deputado Lucas Pires para responder.
O Sr. Lucas Pires (CDS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Eu desejava dizer ao Sr. Deputado Vital Moreira que eu falo para quem fala e não para quem berra. É talvez por isso que o Sr. Deputado não me compreendeu inteiramente.
(Aplausos do CDS)
Aliás, eu devo dizer o seguinte: não é a primeira vez que, enquanto o Sr. Deputado fala me ocorrem pensamentos surrealistas, tais como este: se os Americanos têm o direito de chamar a Frank Sinatra “a voz", por que é que não devemos ter o direito de chamar a si "o berro”?
(Risos)
Uma voz do CDS: - Muito bem!
O Orador: - Não sei se a culpa desses pensamentos surrealistas é minha ou será sua. Em todo o caso, não deixarei de traduzir esses pensamentos que me passam pela cabeça nos momentos em que o ouço falar.
Além disso, sobre esse aspecto e sobre a compreensão das minhas fórmulas, queria dizer-lhe outra coisa: eu sei que o marxismo condena os seus intelectuais a serem puros explicadores de uma coisa escrita há muito tempo, e portanto também sei que eles, por fidelidade à letra e por fetichismo da palavra, se encerram demasiado na logomaquia desse mesmo sistema para poderem sair dele e poderem compreender o resto.
Talvez isto seja uma explicação para as suas dificuldades da minha linguagem.
Vozes do CDS: - Muito bem!
O Sr. Vital Moreira (PCP): - Conheço a sua linguagem desde há dez anos em revistas fascistas.
O Sr. Narana Coissoró (CDS): - Ignorante!
O Orador: - O resto que o Sr. Deputado disse foi uma provocação que se volta automaticamente mais contra si e que pede de mim muito poucas explicações. Em todo o caso, dir-lhe-ia que, no caso de querer aprofundar mais a minha resposta, eu considero que o 25 de Abril foi a revolução democrática, mas para que a sua pureza seja mantida, e foi esse o sentido do 25 de Novembro, é preciso extirpar muita coisa e não apenas produzir a vitória militar do 25 de Novembro.
Uma voz do PCP:- É preciso que volte o fascismo!
O Sr. Amaro da Costa (CDS): - O que é preciso é que não volte o 24 de Novembro, onde os Srs. Deputados estavam.
O Orador: - Sr. Deputado: Suponho que isto é tudo quanto basta para o esclarecer.
O Sr. Vital Moreira (PCP): - Esclarecidíssimo!
Vozes do CDS: - Ainda bem!
O Sr. Basílio Horta (CDS): - Custou, mas foi!

(11 de Novembro de 1976, in Diário da Assembleia da República N.º 38, págs. 1156 a 1160)

quinta-feira, 6 de março de 2008

Debates Parlamentares: Programa do Governo PS-CDS (1978)

O Sr. Lucas Pires (CDS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Após quatro dias de debate e perante um Programa de três centenas de páginas, não pode deixar de se experimentar um certo desalento verbal. O ambiente é próprio, porventura, a compreender como a sombra dos números começa a embaciar o brilho das palavras. Porventura estamos, de facto, em Portugal, no momento em que os números se tornam reais, em que os números se sentem e se mastigam – o momento em que os números da inflação, do deficit externo, da desvalorização do escudo, saem dos cálculos, das estatísticas, das contas dos economistas e invadem, com a sua brutal franqueza, a vida corrente dos Portugueses.
É curioso notar a este respeito como o Dr. Mário Soares, aquando da sua apresentação televisiva do «pacote 2», ainda teve o cuidado de remeter os números para o rodapé da comunicação. Mas eis que, incontidamente no dia seguinte, eles escorregam da manga larga do seu Ministro das Finanças, perante o mesmo auditório e à mesma hora. E, pronto, era a sua primeira aparição pública. Então começou muita gente a perceber que os números não eram apenas os hieróglifos dos economistas, que os números são a própria seiva da vida económica moderna. As palavras começavam a perder a guerra com os números, embora se admita que elas próprias haviam constituído, por sua vez, uma etapa vitoriosa, contra o puro activismo da rua, em que se traduzira a fase precedente desta revolução, fase de que a própria Constituição – como revolução escrita – só a custo conseguira emergir.
Era ainda a fase em que palavras como comunismo, socialismo, social-democracia, democracia-cristã, eram verdadeiros exércitos de letras. A própria economia era, então, sobretudo, uma economia literária. Basta dizer que o primeiro plano de economia portuguesa não era quantificado e que, suprema e máxima ironia, a circulação monetária era, sobretudo, a circulação de letras. Embora, também aqui note-se, houvesse, apesar de tudo, um progresso, pois que na fase anterior, da revolução na rua, os números eram considerados um valor burguês e por pouco não se procedera, como o fizera Fidel Castro, à suspensão da contabilidade.
Risos do CDS.
De resto, o que era esta paixão das palavras senão também a compreensível recusa activa do enorme silêncio em que se vivera durante cinquenta anos?
Eis, porém, que o ciclo das palavras se retrai e se abre o ciclo dos números. Suponho que, em grande parte, foi isso o que quis dizer Mário Soares quando aqui confessou que não estava em causa consumar de imediato o socialismo, o que estava em causa era a economia, a democracia e tudo o que é essencial para o maior número possível de portugueses.(...)
Repare-se, aliás, no facto de a alternativa entre socialismo, comunismo, social-democracia e democracia-cristã ser cada vez menos agitada, e em lugar dela tomar crescento relevo a opção alternativa entre presidencialismo e parlamentarismo. É um fenómeno que assinala muito bem como a questão principal já não é das alternativas entre ideias políticas, mas sim de entre modos de governo efectivo! Já não é a questão da escolha pura, mas sim a questão da eficácia. Já não é a questão do país transcendente, mas a do país real.
Ora, entre o PS e o CDS não há nenhuma comunidade nominalista e é por isso que a objectividade do acordo entre eles pode ser mais objectiva do que a de qualquer dos restantes acordos imagináveis.
Vozes do CDS: - Muito bem!
O Orador: - A mera constituição de uma maioria significa que o Poder não está permanentemente a concurso, que os projectos de lei nascem inteiros e que não cheguem à Assembleia como quem pede a uma incubadora para lhe completar as formas e lhe imprimir o sexo.
Risos do CDS. (...)
O Orador: - O Governo pode, ainda, passar a ser mais realista e eficaz, pois passa a integrá-lo o partido português que menos deve ao Poder e que representava mesmo uma espécie de país real virado ao Estado oficial, uma espécie de país liberal virado ao Estado «socialista». (...)
Evidentemente, eu não creio que estejamos num mar de rosas e que a vida deste Governo vá ser uma marcha triunfante, entre alas engalanadas, a caminho acelerado de um bilhete-postal do tipo da «grande e próspera nação». Desde logo porque os problemas do País não são apenas problemas de Governo e porque a salvação já não vem pelo verbo – deste Programa ou de outro – como poderia ter vindo no princípio.
O pessimismo tem os seus argumentos. Dir-se-ia, por exemplo, que, de um acordo de governo que resulte basicamente de um apelo dos números se pode resvalar para aquilo que se quis até evitar – a pura gestão, a lógica tecnocrática, a realizar, ainda por cima, por quem não foi escolhido em função de tal lógica. O Programa que nos foi apresentado terá até porventura ressaibos desse tecnocratismo e pode mostrar-se mesmo um pouco desanimador para qualquer inimigo das sebentas. Dir-se-á até que a solução é em si mesmo demasiado geométrica, negligencia tensões reais, abstrai de que somos um país afectivo, ou de, como diz Pessoa, apenas «somos tudo ou nada», e esqueceria, ainda e sobretudo, que é também de uma esperança, e não apenas de um programa que se precisa, que é, mais que qualquer outro, um país de pessoas mais que um país de números. É preciso estar prevenido disto tudo e responder. Principalmente é preciso não ter a tentação de pensar que a resolução dos problemas portugueses se há-de esgotar na pura gestão da situação dada ou existente. É preciso, sim, aceitar que a aceitação das instituições dadas e a assunção da responsabilidade por elas é a primeira condição para a sua transformação democrática no sentido de uma maior liberdade, operacionalidade e eficácia dessas mesmas instituições. A nossa perspectiva não é, pois, a situacionista. Na sua própria origem esta fórmula de Governo assenta, de resto, numa vontade intensa de alterar profundamente as condições reais da vida política portuguesa, e se, de crítica é passível, é até de um excesso de voluntarismo. Introduz tanto um outro modo de olhar politicamente como uma outra direcção para o olhar, menos vesga e mais rasgada, deixando aberto o caminho em frente e corrigindo certo estrabismo «esquerdista» que ainda por aí pulula. (...)
Quando falamos de humildade, temos de notar, ainda, que tudo é cada vez mais connosco e com todos nós. Que os balões de política externa e o ópio da diversão externa cada vez empolgam menos e não são por si só suficientes. Julgo, de facto, que este Programa e este Governo hão-de marcar, também, uma espécie de regresso a casa, de regresso à estima e à consideração de nós próprios. Precisamos e muito, é certo, de ajuda externa. Estamos ainda a ser prezados e obsequiados por toda a Europa como se fôssemos a nova fronteira redescoberta do velho continente. Mas temos de evitar a tempo transformarmo-nos no seu far-west. Temos de cuidar cada vez mais daquilo que Rousseau, opondo-o ao chauvinismo do «amor-próprio», chamava o «amor de si». Se todos nos responsabilizarmos e empenharmos como tais, pondo de pousio os nossos exércitos de letras, estaremos todos – como suponho que é empenho comum – a evitar que os abutres tenham razão. (...)

(13 DE FEVEREIRO DE 1978, DAR I SÉRIE-NÚMERO 39, pags. 1421 a 1425)

domingo, 2 de março de 2008

Para lá da (meia) verdade politicamente correcta (Conclusão)


Temos, porém, de partir do princípio de que se deve respeitar, antes de mais, a “verdadeira” economia e a “verdadeira” sociedade ou, no plano internacional, a “verdadeira” paz, que hoje é também um entendimento de nações e não apenas de sociedades, se queremos chegar a uma “verdadeira” moral comum e, com a sua ajuda, resistir ao vendaval que está a abalar a “falseada” construção que habitamos. A aliança para a reconstrução de uma ordem moral da sociedade só pode ser, pois, uma aliança de liberdades individuais e autonomias de grupos – não uma aliança de poderes.
Estas liberdades e grupos não vivem no ar. Vivem de tradições próprias e dentro de uma tradição de valores comuns, aos níveis nacionais e, num plano mais rarefeito, ao nível europeu. É na “tradição” que se encontra o “quadro moral” de uma sociedade, “integrando nomeadamente o sentido tradicional de justiça e equidade” e “permitindo, pois, encontrar compromissos igualmente justos e equitativos entre interesses opostos” (Karl R. Popper, Conjectures et Réfutations, trad. de Michelle Irène e Marc B. Launay, Paris, 1985, p. 513). A sociedade aberta não equivale à anulação ou redução moral a esquemas vazios. Implica sim o reconhecimento dos sinais de verdade de outras tradições e uma abertura real à sua renovação em comum.
No plano económico, precisamos de demonstrar que a virtude também é mais competitiva do que o vício e evitar que este explore aquela, como aconteceu no pico do Estado-Providência. “O vício só é concorrencial quando parasita a virtude” (Henri Hude, “Morale et Politique” in Ethics and Politics, obra cit., p. 68). Se alguma vez se acreditou que, no plano económico, a competição de vícios individuais poderia resultar em virtudes colectivas foi só devido a uma confusão de palavras que induzia à falsa identificação entre certas formas de energia pessoal e a sua mais luzidia aparência (cf. Jean Baechler, Democracy, Paris, 1995, p. 131).
A ética económica não é apenas uma forma de “bom comportamento” à “menino Pompeu”. Tem de ser acreditada como uma via de economia de recursos. Sob este aspecto, há que reconciliar a economia e a moral mas também a moral com a economia. Paralelamente, é preciso favorecer as formas de auto-regulação normativa que são a única via por onde a formação de valores comuns pode caminhar sem a simultânea concentração de meios de poder. Para lá dela, a intervenção do Estado e das novas unidades políticas deverá obedecer ao princípio da subsidiariedade.
Por sua vez, no terreno político, trata-se de encontrar novas formas de representação e participação, como, aliás, hoje se procura em Portugal, através do referendo e da reforma eleitoral. O primeiro responsabilizará mais o Povo, tornando menos abstracto e mais concreto o titular de soberania. A segunda ajudará a desenvolver uma classe política formada pela ética da responsabilidade. São progressos que devemos acalentar e espevitar e, por alguns de nós, são pedidos desde o início do processo democrático.
Entre a política e a economia é urgente reforçar, inclusivamente no plano internacional, o lugar do que já se chamou uma “ecologia da vida social” onde as virtudes cívicas e um renovado espírito de cidadania possam encontrar terreno fértil. Sintomaticamente nesta direcção o Tratado de Amesterdão vem afirmar o lugar das associações, do voluntariado e das igrejas, falar em princípios (estado de direito, democracia, justiça social, direitos fundamentais), criar uma base legal para combater a exclusão social e dilatar as capacidades de co-decisão do órgão representativo (PE) da virtual “sociedade civil” europeia. O progresso é significativo porque, até Maastricht, a União só aparecera interessada na eficácia do mercado e admitia-se ser mais obra de processo que de sentido.
O argumento moral não pode ser abusado e é frequente que os partidos éticos se revelam como uma simples manifestação de hipocrisia. Para os cristãos seria, porém, incompreensível que, sendo a fé e a política atitudes que tocam a tudo, ambas não se tocassem em nada, pelo menos como continuidade de uma preocupação moral. Afinal, a exigência de uma responsabilidade pelos outros cabe cada vez mais a todos, como a sida ou a droga vieram dizer de modo gritante. E, no plano internacional, a reivindicação pelo menos de uma “tolerância activa” já foi sugerida como parte de uma nova “ética global” (Flora Lewis, “Globalization Brings a Need for Global Ethics” in Herald Tribune, 28/03/1996). Sem esse reconhecimento de um mínimo de responsabilidade de “um por todos e todos por um”, o individualismo crescente chegaria ao ponto de nos levar a perguntar que sentido teria falar de sociedade e de vida em sociedade.
Em geral, não se pode nem se deve utilizar em política o radicalismo ético do fiat justitia pereat mundo mas é indispensável cultivar uma norma de responsabilidade que cuide do salus populi como suprema lex, face a ameaças que hoje, como nas doenças modernas, não dissociam mais o espírito e o corpo. Ora é justamente do respeito de uma certa ordem de valores que depende hoje a própria salus populi e o que pode ser considerado a primeira responsabilidade e verdade da política.
Neste dealbar do século e do milénio, a esperança – que é sintomaticamente uma palavra essencial tanto à política como à fé – funda-se pois no que o Papa chamou “um novo sobressalto do espírito humano, passando pela mediação de uma autêntica cultura de liberdade” (alocução de 5/10/95, na ONU). Essa cultura é, por sua vez, antes de mais, “o modo de exprimir a dimensão transcendental da vida humana” (ibid.). Ou, como disse Malraux, o séc. XXI será espiritual ou não será! A empresa parece incerta, longa e exigente como a de uma “converso permanente” mas tem a vantagem, como a aventura de um peregrino, de depender apenas de nós e constituir, no ponto de chegada, tanto uma certeza como uma libertação.

(Versão ampliada da conferência apresentada ao “Encontro Fé e Cultura”, Coimbra 1997, in “Brotéria” 147 (1998), págs. 297-310)