segunda-feira, 31 de março de 2008

Portugal e a Europa

Uma relação difícil: quase um problema de identidade

E sobre a relação entre Portugal e a Europa? A primeira sensação é de que a resposta não é simples. Os mais pessimistas acreditam numa desafectação congénita entre ambos. Curiosamente, porém, a dificuldade ou é vista a nosso favor, como resultado de uma espécie de “super-identidade” portuguesa, ou é vista contra nós, qual história do “pote de barro contra o pote de ferro” (António Quadros) e subsequente ameaça de descaracterização lusíada no magma da integração continental. De um lado, há quem ache que uma “grande” história própria circunscreve o nosso destino em si mesmo e não o deixa procurar outros parentescos ou conjugar-se com eles. Do outro lado, pelo contrário, pensa-se que uma “pequena” nação, ao abrir as suas fronteiras, corre o risco de uma invasão pacífica e de uma neutralização ou desistência vital.
Em parte, a preocupação compreende-se e não só por o nosso país ser daqueles que sempre discutiu mais obsessivamente a questão da sua identidade. Primeiro, somos um dos mais velhos países independentes – senão o mais velho – de um continente que já por si se considera “velho” e é composto por um “mosaico” de países entre os mais “idosos” do mundo. Temos mais de oito séculos de independência e há mais de seis séculos temos as mesmas fronteiras – aliás, duramente conquistadas –, o que contrasta de um modo gritante, por exemplo, com uma Europa de Leste, onde a maioria das fronteiras foi imposta por convénios internacionais e, sobretudo, tem menos de um século.
Além disso, somos o país europeu que mais cedo se fez ao largo (1415) e mais tarde regressou a casa (1974-1975). A partida para Ceuta abre um ciclo; a chegada de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Timor encerra outro, e não apenas na nossa história. Sob este aspecto podemo-nos considerar o maior “filho pródigo” do “velho testamento” europeu ou o “novo Ulisses” da sua segunda errância. Continua a prender-nos ao mundo extra-europeu não apenas uma história mas uma língua de quase duzentos milhões de pessoas, que é a quinta língua mundial e tem por isso um peso próprio, como um campo magnético de que fôssemos o pólo. Foi, aliás, o que nos fez sentir e partilhar o grande escritor moçambicano José Craveirinha, quando disse, ao receber o Prémio Camões (1991), que, tal como Pessoa, considerava a língua a sua verdadeira pátria... (...)
Uma língua que é minoritária na Europa está nos primeiros lugares em África ou na América Latina. E se só por dentro de uma língua vamos directamente ao coração das coisas e das pessoas, como que penetrando um segredo, será sempre mais directo o nosso entendimento com um brasileiro, um angolano, um moçambicano, um guineense, um cabo-verdiano, um são-tomense ou um timorense que com europeus de outros países. Entre estes e os primeiros, a diferença seria equivalente à que pode existir entre vizinhos ou parceiros de cultura e profissão, por um lado, e amigos de convivência, ou familiares, por outro. (...)
Evidentemente, Portugal também é um país atlântico, entre a periferia do Norte e a periferia do Sul, ou, se se preferir, entre a “civilização do frio” e a “civilização do trópico” (Alçada Baptista). A nossa atlanticidade é mesmo constituinte. Opõe-nos e diferencia-nos da Espanha, colocada no mesmo meridiano mas muito mais mediterrânica. Enquanto Lisboa é o princípio do mar e desperta forças centrífugas, Madrid é o “núcleo duro” da Meseta ou o centro mais recolhido da Península de onde se podem alimentar as forças centrípetas. (...)
E há também como que uma idiossincrasia própria do provo português e do “ser português”, tal como Teixeira de Pascoais a tentou traduzir numa versão espiritual e sentimental. Ela envolverá, mesmo, para lá da sensibilidade da distância que é a saudade e das suas dimensões mais pessoais e familiares, tonalidades de comportamento político que explicariam, por exemplo, o paradoxo de a nossa história abundar em revoluções e proclamações tão míticas como o “sebastianismo”, mas estas serem tão frouxas quanto abundantes e se entremearem com formas radicais de pragmatismo e fulanização política. O nosso particular humanismo poderia ainda, por sua vez, reclamar-se do recorde histórico na antecipação da eliminação da pena de morte, que hoje, embora ainda aceite na legislação de alguns países, já não é aplicada em nenhum dos Estados membros da Comunidade. E não será também impunemente que o herói nacional é um poeta e o símbolo respectivo um livro de poemas.


No entanto, a nossa cultura é uma cultura europeia

Tudo o que foi invocado nos torna diferentes, mas não é forçosamente nada de antieuropeu, sobretudo numa Europa ainda por cima aberta por excelência, quer para dentro quer para fora. As diferenças agirão, sim, como garantia de não dissolução e “fita de tornesol” da nossa diferença e ânimo competitivo-cultural. Paradoxalmente, o confronto espevitará mesmo a nossa alteridade e o respectivo brio. Dir-se-ia até que a nossa integração cultural europeia começou logo com a derrota de Viriato. Desde então, os povos da área geográfica que hoje constitui o nosso país têm uma cultura “europeia”, se por esta entendermos uma inspiração moral e religiosa cristã; um direito na recta descendência do direito romano e modos de pensar e de ver idênticos aos concebidos originariamente pela velha Grécia. Estes são os mais comuns factores de formação dos Portugueses, no sentido mais vasto da palavra “educação”. Julgo que é isso o que aprendemos e sentimos, sem que tenhamos de estar a pensar à alemã, à francesa, à inglesa, enquanto vamos vivendo “à portuguesa”... (...)
A história portuguesa é, em qualquer caso, história europeia, e “a ideia de Europa articula-se nela” como a ideia de nação (Martim de Albuquerque). (...)
Permanecemos até algumas vezes mais arreigados ao núcleo fundamental da cultura europeia ou fomos menos autocríticos em relação a ela. Talvez por isso chegámos a ser considerados por outros como “a mais europeia das nações” (Reinhold Schneider). Entre nós já se admitiu igualmente que a identidade europeia seria aqui mais “vivamente sentida”, como lugar de fronteira e periferia, e portanto “resultado de constante presença do outro” (José Mattoso).
Dir-se-ia ainda que, por termos “carregado” essa cultura comum através do mundo, ficámos mais presos à sua conservação – uma conservação que, aliás, não é contraditória com a tolerância para fora. As novas vagas do Centro da Europa chegavam aqui refervidas e eram frequentemente rejeitadas como “estrangeiradas”, mas quantas vezes em nome de um europeísmo matricial ou mesmo já vetusto, que simplesmente não se compaginava com o movimento de rupturas sucessivas de uma cultura de risco, interrogação e mudança como a europeia. (...)
É verdade que a nossa grande gesta foi extra-europeia, mas é ainda por isso que, paradoxalmente, se pode dizer que “somos superlativamente europeus porque já o éramos quando a Europa se definia na história do mundo como continente medianeiro” (Eduardo Lourenço). A nossa própria obsessão de identidade é, sob esse aspecto, paralela da mesma procura permanente de si própria pela via da fuga e extroversão que é, também sob vários aspectos, a história europeia.


(excerto de “O Que É – Europa”, de Francisco Lucas Pires, Difusão Cultural, 1992, p.132-140)

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