quinta-feira, 20 de março de 2008

Rever a Constituição: porquê?


1. Na última revisão da Constituição, o sensível aumento de poderes do Parlamento e a extinção dos poderes do Conselho da Revolução não foram acompanhados, como seria lógico, de um correspondente alargamento da autonomia da sociedade civil e da liberdade empresarial. Extinguiu-se o garante revolucionário, mas manteve-se o princípio das “conquistas irreversíveis da Revolução”. Acentuou-se o pendor parlamentarista e civil, mas sem reforçar as bases económicas deste. A revisão por quatro quintos da Constituição económica seria assim o modo de conseguir um equilíbrio, sem o qual o funcionamento da Democracia e do Regime ainda estarão mais ameaçados. No fundo é como se se tratasse de completar a revisão feita o ano passado, criando uma maior coerência entre a constituição política (muito revista) e a constituição económica (pouco revista).
2. Tem-se também constatado que o enorme sector público criado pelo 11 de Março acumulou grandes défices, pesa fortemente no nosso endividamento e está descapitalizado. Com a agravante, porém, de que, a partir de agora, não é mais suportável continuar a recorrer aos aumentos dos preços e dos impostos para financiar situações de saldo repetidamente negativo.
Os últimos impostos, por exemplo, mostram que se está à beira de cair no delírio fiscal. (...)
A solução é outra. De facto, é geralmente reconhecido, como aliás o afirmava na sua edição de 5 de Setembro o influente e insuspeito diário espanhol “El País”, que o sector público é o principal responsável da crise económica portuguesa. (...)
3. O acordo com o Fundo Monetário Internacional impõe, de resto, condições às empresas públicas e intervencionadas que podem determinar a necessidade de despedimentos maciços, se não até, nos casos mais gravosos, de encerramento das próprias empresas.
O conjunto do sector público deixou de oferecer segurança e independência para os seus trabalhadores (o que, em teoria, poderia ter representado, no passado, a sua vantagem) e para salvar tais empresas e empregos pode agora ter de se sacrificar o seu carácter público e admitir a sua transformação noutras formas, mistas ou privadas. Pode mesmo dizer-se: o sector público, criado ou dilatado pela Revolução, tornou-se uma ameaça para os trabalhadores portugueses.
Não se conhece, aliás, nenhuma outra política alternativa global, proposta para salvar e relançar o sector público como tal e apresentada pelo Governo ou pelas forças partidárias que nisso, ideologicamente, mais poderiam estar interessadas. E é por isso que, como sempre entre nós, o adiamento pode prevalecer à espera que soluções do tipo do naufrágio do “Titanic” possam vir a acontecer sem culpas de ninguém – dir-se-á então – e com toda a “orquestra” da distracção política ainda a tocar.
4. Não se trata apenas de um problema de emprego. São também as desigualdades crescentes no sector público que começam a tornar-se insuportáveis. O leque delas vai desde o privilégio para uns, até ao desemprego para outros. São também as conquistas sociais que estão ameaçadas pelo peso do actual sector público. E a manutenção dos esquemas de distribuição social pode exigir e justificar também a “dessocialização” ou “desnacionalização” dos esquemas de produção económica. O essencial está no bem-estar e na sua preservação. Não no modo como se chega lá. O modo de “distribuição” é mais eficaz com um modo de “produção” mais eficaz, mesmo que este seja de outra natureza.
(...)
6. Há ainda motivos para pensar que a dimensão e inércia das estruturas do sector público está a tornar a alternância democrática em parte ineficaz e explica que esta não tenha sido capaz de resolver os problemas. E que as zonas do poder efectivo subsistem inalteradas, através do sector público, apesar das mudanças de maioria.
Estamos, aliás, a constatar quanto, no quadro económico existente, se depende do Estado. É uma dependência brutal, a que consiste em o Governo comandar quase todos os preços e é claro que isso resulta da própria omnipresença económica e financeira do Estado e do sector público. A crise súbita, que nos acorda e sacode diariamente, com decisões pesadas e surpreendentes, mostra até que ponto é preciso aliviar esta dependência e construir uma economia ligada à nossa liberdade e à nossa natureza.
Começa a entender-se, facilmente, à vista desarmada, que seria mais fácil às instâncias democráticas controlar e dominar os abusos e a eventual corrupção do poder económico privado do que os de um intocável sector público. A simples intocabilidade pode transformar os vícios em virtudes.
A dependência do poder económico em relação ao político está sempre assegurada em Democracia e, em qualquer caso, é contraditório que, para manter um sector público em nome desse princípio, tenhamos de, regularmente, fazer acordos de dependência e controlo da situação do País por parte dos organismos financeiros internacionais. O que é preciso em Portugal não é diminuir o poder económico privado. o que é preciso é aumentar e solidarizar o poder político democrático, para o qual, justamente, o sector público que existe se torna um peso e não uma garantia. Ou será que os governos chegarão a estar dispostos a vender o ouro e entregar as bases militares, mas por capricho revolucionário (que contradição nos termos) terão de continuar a manter as conquistas irreversíveis e a limitar a iniciativa privada?
7. É neste quadro, subitamente tornado mais consciente e evidente pelo acordo celebrado com o FMI, que parece adequado propor a revisão da parte económica da Constituição, de modo a tornar possível, nomeadamente, a participação privada e social no capital das principais empresas públicas do País. (...)
O primeiro acordo com o Fundo poderia ser visto ainda como consequência apenas de desajustamentos, erros e distorções conjunturais. O segundo vai mais longe e indica claramente que o epicentro da crise está no sector público.
A questão da consciência está resolvida. O problema é o de tirar ou não as consequências disso e evitar que o sistema nos lance de novo, mais tarde, a caminho do terceiro acordo com o FMI, num patamar sucessivamente mais baixo e restritivo de negociações. O acordo com o FMI só é plenamente útil se não ajudar a esconder que a crise é do sistema. De outro modo, será uma desculpa bem a propósito para o Partido Socialista e, após “pausa” do “rigor”, poder-se-á relançar uma política socialista de mais gastos.
8. Tudo leva a crer (e constituiria uma perigosa forma de cegueira não o ver) que é o próprio modelo e a própria filosofia da acção económica que estão em causa, não sendo de modo nenhum suficiente para resolver a crise aumentar as condições de consenso social à volta do referido sistema – pretensão que, aliás, todos os dias se demonstra mais inviável – ou aumentar a autoridade burocrática sobre o mesmo sistema, comprimindo e restringindo o seu laxismo natural.
De nada servirá continuar a combater um fogo, repetido e sempre ampliado, com raminhos de giestas... E seria extraordinário que, falando-se tanto de crise e dando-se desta a mais vasta ideia possível, a mesma não suscitasse nenhuma revisão de fundo no quadro económico português. Parece, de resto, óbvio que o reequilíbrio global do sistema só pode ter a sua base na própria Constituição, que desde o princípio sempre foi colocada nesse ponto e nessa função. Se a crise é tão grave como se diz, mais uma razão para começar aí e já. (...)
O ideal é que a reforma económica tivesse precedido e prevenido a crise. Não tendo isso sido possível (é fácil reconhecer os culpados), ao menos que tal reforma seja contemporânea da grande crise instalada. O único problema está em saber quem, dos quatro quintos democráticos do Parlamento, recusa a ideia de que há uma crise institucional da economia? (...)
A verdade é que o sector público e a lógica socialista vêm funcionando em pura perda desde 1975 – e os “elefantes brancos” mesmo desde antes do 25 de Abril como, aliás, era recentemente reconhecido numa discutida nota do Ministério das Finanças sobre o acordo com o FMI. Seria lógico supor-se, a partir daí, que as crises do sistema não são apenas resultantes da avaria intermitente dos fusíveis...
9. Julgamos também que só assim se poderá criar uma verdadeira economia mista, capaz de assegurar a solidariedade entre a Sociedade e o Estado e de realizar os valores morais e sociais de fraternidade e ultrapassagem comum da crise estrutural da economia portuguesa.
Não se trata, com efeito, de obrigar as empresas públicas a transformarem-se em privadas. Trata-se de revogar o impedimento de uma maior cooperação entre o sector público e o privado e de uma integração activa dos cidadãos na vida das empresas públicas. É esse alheamento obrigatório que torna as “conquistas irreversíveis” em depósito de uma revolução parada, sem capacidade de adaptação e sem ligação ao movimento real das aspirações e interesses colectivos no dia-a-dia.
Nem sempre, aliás, a privatização ou outra forma de desestatização do sector público convirá muitas vezes às empresas privadas existentes. Imagine-se (e não é preciso) um aumento dos adubos de mais de oitenta por cento, determinado pela necessidade de diminuir os custos da empresa pública que os produz. Quanto ganhará com isso a empresa privada concorrente que produz para o mesmo mercado e vai beneficiar também dos novos preços? Não é verdade que a esta empresa privada lhe conviria sempre a manutenção de outra empresa pública para levar o Governo a subir os preços do mesmo produto que também vende?
Trata-se, pois, de apenas de repor um equilíbrio e de ver o país normalmente em democracia, com mais liberdade e com menos medo. Manter factores revolucionários para lá do seu papel histórico é incubar factores contra-revolucionários, a pouco e pouco. A demasiada persistência da revolução só pode facilitar o trabalho da contra-revolução.
Começa a sentir-se que a única base de legitimidade do Regime é a Democracia. Só isso lhe é essencial, só isso une toda a gente, só isso pode evitar que a nossa Democracia continue, como na Ditadura, a viver do mito das finanças públicas como sustentação do Estado, dos cidadãos, das empresas e das instituições intermédias.
Seria este o objectivo prático da revisão proposta: na véspera da próxima eleição presidencial consagrar a Democracia como única senhora de legitimidade do Regime!

(artigo no Diário de Notícias, 30 de setembro de 1983)

Um comentário:

Paulo Colaço disse...

Cheguei a este blog por acaso e achei-o extraordinário!

Sem muito tempo, de momento, para ler melhor este texto, detenho-me um pouco no excerto "princípio das conquistas irreversíveis".

Esse principio das conquistas irreversíveis tem tolhido o entendidmento que o TC faz da Constituição e impede que alguns jarrões (como o Código do Trabalho) nos impeçam de chegar mais longe.

Saudações de um admirador de FLP.