domingo, 2 de março de 2008

Para lá da (meia) verdade politicamente correcta (Conclusão)


Temos, porém, de partir do princípio de que se deve respeitar, antes de mais, a “verdadeira” economia e a “verdadeira” sociedade ou, no plano internacional, a “verdadeira” paz, que hoje é também um entendimento de nações e não apenas de sociedades, se queremos chegar a uma “verdadeira” moral comum e, com a sua ajuda, resistir ao vendaval que está a abalar a “falseada” construção que habitamos. A aliança para a reconstrução de uma ordem moral da sociedade só pode ser, pois, uma aliança de liberdades individuais e autonomias de grupos – não uma aliança de poderes.
Estas liberdades e grupos não vivem no ar. Vivem de tradições próprias e dentro de uma tradição de valores comuns, aos níveis nacionais e, num plano mais rarefeito, ao nível europeu. É na “tradição” que se encontra o “quadro moral” de uma sociedade, “integrando nomeadamente o sentido tradicional de justiça e equidade” e “permitindo, pois, encontrar compromissos igualmente justos e equitativos entre interesses opostos” (Karl R. Popper, Conjectures et Réfutations, trad. de Michelle Irène e Marc B. Launay, Paris, 1985, p. 513). A sociedade aberta não equivale à anulação ou redução moral a esquemas vazios. Implica sim o reconhecimento dos sinais de verdade de outras tradições e uma abertura real à sua renovação em comum.
No plano económico, precisamos de demonstrar que a virtude também é mais competitiva do que o vício e evitar que este explore aquela, como aconteceu no pico do Estado-Providência. “O vício só é concorrencial quando parasita a virtude” (Henri Hude, “Morale et Politique” in Ethics and Politics, obra cit., p. 68). Se alguma vez se acreditou que, no plano económico, a competição de vícios individuais poderia resultar em virtudes colectivas foi só devido a uma confusão de palavras que induzia à falsa identificação entre certas formas de energia pessoal e a sua mais luzidia aparência (cf. Jean Baechler, Democracy, Paris, 1995, p. 131).
A ética económica não é apenas uma forma de “bom comportamento” à “menino Pompeu”. Tem de ser acreditada como uma via de economia de recursos. Sob este aspecto, há que reconciliar a economia e a moral mas também a moral com a economia. Paralelamente, é preciso favorecer as formas de auto-regulação normativa que são a única via por onde a formação de valores comuns pode caminhar sem a simultânea concentração de meios de poder. Para lá dela, a intervenção do Estado e das novas unidades políticas deverá obedecer ao princípio da subsidiariedade.
Por sua vez, no terreno político, trata-se de encontrar novas formas de representação e participação, como, aliás, hoje se procura em Portugal, através do referendo e da reforma eleitoral. O primeiro responsabilizará mais o Povo, tornando menos abstracto e mais concreto o titular de soberania. A segunda ajudará a desenvolver uma classe política formada pela ética da responsabilidade. São progressos que devemos acalentar e espevitar e, por alguns de nós, são pedidos desde o início do processo democrático.
Entre a política e a economia é urgente reforçar, inclusivamente no plano internacional, o lugar do que já se chamou uma “ecologia da vida social” onde as virtudes cívicas e um renovado espírito de cidadania possam encontrar terreno fértil. Sintomaticamente nesta direcção o Tratado de Amesterdão vem afirmar o lugar das associações, do voluntariado e das igrejas, falar em princípios (estado de direito, democracia, justiça social, direitos fundamentais), criar uma base legal para combater a exclusão social e dilatar as capacidades de co-decisão do órgão representativo (PE) da virtual “sociedade civil” europeia. O progresso é significativo porque, até Maastricht, a União só aparecera interessada na eficácia do mercado e admitia-se ser mais obra de processo que de sentido.
O argumento moral não pode ser abusado e é frequente que os partidos éticos se revelam como uma simples manifestação de hipocrisia. Para os cristãos seria, porém, incompreensível que, sendo a fé e a política atitudes que tocam a tudo, ambas não se tocassem em nada, pelo menos como continuidade de uma preocupação moral. Afinal, a exigência de uma responsabilidade pelos outros cabe cada vez mais a todos, como a sida ou a droga vieram dizer de modo gritante. E, no plano internacional, a reivindicação pelo menos de uma “tolerância activa” já foi sugerida como parte de uma nova “ética global” (Flora Lewis, “Globalization Brings a Need for Global Ethics” in Herald Tribune, 28/03/1996). Sem esse reconhecimento de um mínimo de responsabilidade de “um por todos e todos por um”, o individualismo crescente chegaria ao ponto de nos levar a perguntar que sentido teria falar de sociedade e de vida em sociedade.
Em geral, não se pode nem se deve utilizar em política o radicalismo ético do fiat justitia pereat mundo mas é indispensável cultivar uma norma de responsabilidade que cuide do salus populi como suprema lex, face a ameaças que hoje, como nas doenças modernas, não dissociam mais o espírito e o corpo. Ora é justamente do respeito de uma certa ordem de valores que depende hoje a própria salus populi e o que pode ser considerado a primeira responsabilidade e verdade da política.
Neste dealbar do século e do milénio, a esperança – que é sintomaticamente uma palavra essencial tanto à política como à fé – funda-se pois no que o Papa chamou “um novo sobressalto do espírito humano, passando pela mediação de uma autêntica cultura de liberdade” (alocução de 5/10/95, na ONU). Essa cultura é, por sua vez, antes de mais, “o modo de exprimir a dimensão transcendental da vida humana” (ibid.). Ou, como disse Malraux, o séc. XXI será espiritual ou não será! A empresa parece incerta, longa e exigente como a de uma “converso permanente” mas tem a vantagem, como a aventura de um peregrino, de depender apenas de nós e constituir, no ponto de chegada, tanto uma certeza como uma libertação.

(Versão ampliada da conferência apresentada ao “Encontro Fé e Cultura”, Coimbra 1997, in “Brotéria” 147 (1998), págs. 297-310)

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