sábado, 10 de maio de 2008

9 de Maio: dia santo ou revolucionário?


O 9 de Maio – dia da Europa – devia ser comemorado como uma revolução. Evoca a declaração de Schumann (um católico centrista, tipo santo revolucionário) na base de uma proposta de Monnet (o primeiro “gestor” moderno de conflitos interestaduais) que foi o “abre-te, sésamo” para o fim das guerras – e das revoluções! – na Europa ocidental. O carácter “último” desta revolução explicar-se-ia por, através dela, o homem comum, género consumidor sem fronteiras, ter começado a tomar o poder para lá da soberania e dos Estados.
Quarenta anos depois, a questão é, porém, a inversa. É a de saber como sair do quietismo conformista e mesmo alienador em que aquela revolução caiu. Por dentro, ela claudica quando o homem da rua, velha carne para canhão das guerras continentais, volta a sentir-se súbdito, agora de uma burocracia abstracta e longínqua (Bruxelas), em vez de ver prosseguido o processo emancipatório da cidadania europeia, até à plena consciência e domínio político do novo espaço.
Por fora, a evolução europeia vê-se ameaçada pelo “blitz” da globalização que ameaça reduzir a Europa a um “clone” da América, liquidando o seu ex-líbris – modelo social europeu – perante a impotência da sua outra glória – o Estado nacional – que, no entanto, resiste a partilhar poderes que já não pode exercer.
Claro que o balanço fora positivo. Não chega para estabelecer a paz na Jugoslávia ou a ordem na Albânia? Sim, mas também não deixou degenerar essas guerras civis em guerras europeias, como acontecera antes. Até evidenciou, por contraste, que tais “colapsos” só não ocorrem no seu perímetro, mesmo em países onde a crise e a desconfiança no Estado conheceram vertigens abissais, como na Bélgica ou na Itália.
Talvez por isso os países de Leste se esgadanham para entrar na UE. Os albaneses, perante o sumiço do Estado, lançam-se à água, na direcção do regaço pós-moderno das unidades políticas mais prevenidas. Como se o problema já não fosse guerras intra-europeias mas a pressão da mundialização. Nem fossem as erupções revolucionárias, mas o colapso dos poderes soberanos.
Claro que a moeda única também está à vista. Bastará ao tal homem da rua europeu para forjar uma consciência e um interesse comuns, daqueles que, além de portáteis, omnipresentes e gerais, não enganam. Gerará ainda uma declaração e contaminação globais, arrastando o sistema comunitário e agudizando a reivindicação da legitimação democrática sobre poderes do mercado e da técnica.
A União Monetária exigirá, assim, conquistas proporcionais em todas as esferas não monetárias ou políticas da UE (PESC e segurança interna). Delas dependerá a sua sustentação e consenso. Ou seja: a moeda única não será só uma conquista financeira. E será também a primeira amarra da irreversibilidade da construção e da sua nova cultura de estabilidade, segurança e durabilidade.
O problema, porém, está em saber se a Conferência Intergovernamental será já a senha para o séc. XXI. Será que, em vez de um Maastricht II, Amesterdão lançará a Construção Europeia II, na passagem à Europa Política e Larga? Será que nos conduzirá da incerteza da pós-modernidade para a linha recta da segunda modernidade?
Já é tarde para acreditar. No plano das opiniões públicas nacionais, a atitude reformista continua manietada entre a direita nostálgica do Estado Nacional e a esquerda situacionista do Estado Providência. Ambos prisioneiros da impotência recíproca! As forças reformistas ainda não são tão fortes que rompam esse bloqueio. No plano comunitário, a opinião pública quase não existe e o mecanismo das decisões fundamentais é do “velho testamento”, quando a profecia bastava. No tempo da guerra fria, os Tratados congelaram e a Europa rodava por si, com o mundo parado à volta. Na última década vamos, porém, na terceira revisão. E tudo indica que não vai chegar, como a máquina a vapor não chegaria para a era pós-industrial.
O método da mudança torna-se mais lento enquanto o mundo vai mais rápido. Até chegar à história do quinto marido de Elizabeth Taylor, que inquirido sobre a lua-de-mel, declarou não prever nada de novo... Afinal, se o barco mal passou o Bojador com 12 como passará as Tormentas com 15? Por essas e por outras se banalizou a ideia de outra CIG à boleia da moeda única.
Já não é mau que todos façam o seu melhor, como Kohl ao anunciar a sua recandidatura. A presidência holandesa, avisada desde Maastricht, faz uma arrebatada “percée” voluntarista e adianta um projecto de Tratado. Chirac antecipa as eleições gerais (Maio-Junho) para assinar o novo Tratado sem tremedeiras de mão, talvez economizando um referendo, como De Gaulle, a outro propósito, em 1968, “et pour cause”... E haverá os jantares de “sandwiches” que Cavaco Silva considerava o “doping” por excelência do último quarto de hora negocial.
Sobretudo novo alento sopraria sobre o Atlântico. Quando o eixo continental (Paris-Bona) esmorece, a esperança volta com o último barco da nova outra margem (Inglaterra)! Embora Blair não se comprometa, o pêndulo é fatal no seu movimento. Nem nenhuma hipótese sobre uma “entente” podia ser pior que a anterior. Ironicamente, augura-se aos trabalhistas o melhor de dois conservadorismos: o de Thatcher na economia e de Edward Heath na política externa, para fazer do seu país uma potência de “governo” e não de “oposição” europeia.
Se assim for, podemos ter um resultado à Acto único Europeu ou até à Maastricht: decepcionante no imediato, mas a eficaz a prazo. Como o filho que dizia que o pai era estúpido mas uma década depois já o achava muito inteligente... A diferença é que já não se pesquisarão as pepitas no filão da eficácia (Acto Único) ou da estabilização monetária (Maastricht), mas no plano simétrico da segurança interna (3º pilar). A democratização política ficará para depois, à espera que os jovens europeus cresçam. Não é, pois, com a actual CIG que chegará a segunda modernidade europeia. E, por este andar, o 9 de Maio passará de revolucionário a dia santo. Pode prosseguir a evolução na continuidade. Afinal a Europa já não é um sonho mas uma necessidade. Só se a CIG não chegar para manter as duas rodas da bicicleta de pé, é natural que muitos se dêem à maçada da ratificação. E outros poderão avançar separadamente, num corredor duplamente revolucionário, para lá de Monnet e Schumann, a caminho de outros métodos e objectivos, os primeiros mais democráticos e os segundos mais políticos. E então, como em todas as revoluções, quem lá não estiver que não se queixe...


(artigo no Expresso, 3 de maio 1997)

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