quinta-feira, 15 de maio de 2008

Do socialismo em liberdade à democracia em liberdade


O discurso e as propostas do Partido Socialista não têm trazido muitas novidades, apesar, aliás, dos inúmeros “empréstimos” de que as suas actividades sempre se socorrem. Dir-se-ia até que as suas proclamações mais novas são, afinal, as suas proclamações mais velhas. Constituem, de facto, novidades, mas apenas no sentido de repescarem algumas antiguidades, as afirmações de que a revisão constitucional deve insistir na manutenção da “transição para o socialismo” ou de que os partidos da AD incarnam “o anti-regime”.
Para além de se tornar evidente nesta linguagem que a “Frente” não avança mas recua, constatam-se desde logo em tais afirmações duas originalidades, cujas contradições internas, por chocantes, as tornam ridículas. Por um lado, deve ser a primeira vez que uma Oposição democrática se nomeia Regime e acusa o Governo e a Maioria Democrática de anti-regime, arrogando-se o exclusivo na interpretação de uma ortodoxia oficial.
Por outro lado, deve ser também a primeira vez que uma transição se torna contínua. Perguntar-se-ia, aliás com legitimidade, como é que a transição continua se o PS pretende, justamente, manter tudo, quanto possível, mais ou menos na mesma. Transição para qual outro socialismo se o PS se parece identificar maximalisticamente com o desta Constituição? Retendo apenas o substantivo transição, não será até a ideia de mudança veiculada pela AD que mais se parece com esse potencial dinamismo e é pois mais regime no modo, embora não no objectivo?
A verdade é que, apesar de risíveis de um ponto de vista lógico, as fórmulas citadas, na boca do PS, não podem ser consideradas como inocentes ou descuidadas facilidades linguísticas. Mesmo que tenha a memória curta, como é próprio de toda a política conjunturalista ou eleitoralista, o PS recordar-se-á com certeza de ter sofrido as consequências de fórmulas idênticas. Regime e anti-regime traduzem um tipo de bipolarização que pertence ao glossário do antigo regime e, mais do que isso, ao de todos os regimes cuja vocação é de excluir autoritariamente em vez de compreender democraticamente. A “transição contínua” é, por sua vez, uma fórmula que julgo não ser senão uma versão benigna da arcaica moléstia da “revolução contínua”. Na transição para o socialismo, como na transição para o corporativismo, há o mesmo investimento onírico, o mesmo desperdício de energia e realismo, a mesma alienação inútil e exploradora. E a mesma ideia de transição que, nos dois casos, transforma a Constituição de quadro estável de garantias, regras e direitos, em movimento aleatório e dirigido, quem sabe se por uma desconhecida longa manus.
Mais detalhadamente, parecem vislumbrar-se nas fórmulas citadas pelos epígonos socialistas três pretensiosas ideias fixas. Primeiro, a de que o regime (em transição) deve continuar a ser provisório, balanceado e submisso, qual caminhante de alpergata que aguarda a famosa luz do fim do túnel. Segundo, a de que a fronteira do regime é o socialismo e não a democracia, havendo, portanto, uma espécie de ostracismo constitucional ou exílio interno para os que não sejam socialistas, aos quais é dispensada a liberdade suficiente até para ganhar as eleições, desde que só administrem o Estado, sem o governar, sem se porem contra o socialismo e a favor de um projecto alternativo, sendo a sua vitória apenas tolerada e servindo apenas de canapé ao momentâneo repouso do “guerreiro” socialista ou de intermitente ventilação à sua obra. A terceira ideia fixa dos socialistas portugueses seria a de que o PS seria o morgado do regime, o partido maioral, mesmo quando não fosse o maior, o partido institucional, ainda que larvar, o testamenteiro ou até o legatário do constituinte, o seu único filho legítimo, o interruptor, o fio e a lâmpada por onde se fará a tal luz por vir, ainda que o PCP lhe dispute, muitas vezes, tal legitimidade e insinue que, em termos de devir ou transição futura, o PS poderá ser relegado para uma posição de bastardia, para o que invoca até essa luz maior e ofuscante que seria a de “um sol de terra”...
Pelos vistos, será mesmo neste contexto que deve ser entendida a expressão “socialismo em liberdade”. A liberdade do socialismo seria a única completa e maiúscula. Essa seria a ideologia do regime, mesmo quando não chegasse eleitoralmente, como aconteceu a seguir a 2 de Dezembro, para ser a modesta ideologia do Governo. Também aqui a “teologia” resistiria ao pecado e mesmo à heresia prática. Só o socialismo persistiria, pois, como ideologia constitucional ainda que tolerante e mesmo permissiva. As outras ideologias seriam apenas a-constitucionais, embora faltassem as condições e , nomeadamente, o quadro político externo, que permitiria considerá-las inconstitucionais. (...)
Assim, se o PS não é ainda o partido único, a verdade é que diz que se a unidade se não faz à sua volta, então é ilegítima! Isto é uma monarquia “ideológica” liberal mas é ainda uma monarquia ideológica. Não é o partido único mas é o partido-mestre, intercalar entre o único e o vário, entre o socialismo e “o resto”, meio-único, mexicano ou institucional, sucedâneo do único – e também, nesta versão, afinal, intermediário ou intercessor, junto do mais único de todos os partidos, aquele que já é mais do que um partido, quando os outros ainda o não são bem, o Partido Comunista. É como uma escadaria, em suma.
Há aqui uma lógica de patrimonialismo ideológico que tem, aliás, a Constituição pelo seu lado. E porque não haveria de ser assim se a Constituição também está do lado do PS? Para um partido, ainda por cima sentimental, é indispensável que o amor com amor se pague. A Constituição, de facto, permite ao PS repousar sobre a predestinação a que ela o vota. A Constituição é, de facto, garante do poder ideológico, pelo menos garante de uma certa confessionalidade laica do Estado, tanto ou mais do que garante da liberdade. Demasiado fechada à volta de uma ideologia e de algumas organizações, a Constituição hesita demasiado entre o CR e o Povo, entre o “poder” popular e o poder eleitoral, entre os militantes socialistas e os votantes de todos os partidos. (...)
A Constituição é pois uma escritura da nova propriedade socialista do regime. (...) Numa visão mais pessimista, dir-se-ia, até, estarmos perante um esboço de “Estado Novo Socialista”, uma nova Democracia Orgânica, agora Socialista. Chega a poder imaginar-se que tudo se teria, afinal, passado como se o marcelismo tivesse podido finalmente, embora por interposta acção, avançar até à democracia ou ao sufrágio universal, como inicialmente, aliás, estava previsto, ao mesmo tempo que se convertia ou progredia para o socialismo, sendo certo que, como diz algures Eduardo Lourenço, “o corporativismo já comporta algum elemento socializante”. A hipótese é tão abstracta quanto macabra mas explicaria que, em termos de propriedade do regime, a nossa esquerda se comporte mais como a herdeira ou sucessora do antigo regime do que como a sua negação ou contradição. São categorias mentais idênticas que se reproduzem através das consciências e persistem tanto mais facilmente quanto se podem desculpar com o facto de ter havido uma revolução e até de serem os aludidos “herdeiros” quem parece tê-la feito e disputado em tumultuosas partilhas. Daí o regresso do “anti-regime” e da “transição que continua”.
O esquema aludido é terrificante do ponto de vista teórico, sobretudo quando pensamos que as referidas fórmulas do PS poderiam ser desculpáveis há quatro anos, na altura em que os chefes socialistas eram apenas o eco ou até o “microfone” das massas, mas hoje são uma entranhada e deliberada convicção dos seus autores. Terrificantes poderiam, ainda, parecer tais fórmulas por sugerirem uma reincidência ou uma recaída – fórmula que parece mais adequada dado o carácter “doentio” da lógica que lhes está subjacente. Na realidade, porém, julgo que a “suficiência” socialista é bem mais uma forma de “impotência”. Mesmo aquilo que nessa atitude há de antigo regime representa a fraqueza psicológica de um “enquistamento” ou de uma “transferência”, devidas ao enfrentamento prolongado e duro que com esse mesmo antigo regime tiveram de suportar. (...) É, também, por não ter projecto próprio e vivo que o PS precisa do da Constituição e da bênção que esta derrama sobre ele como partido ungido. (...)


(artigo no Diário de Notícias, 10 de setembro 1980)

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