terça-feira, 27 de maio de 2008

Debates Parlamentares: No 1º Aniversário da Constituição (parte I)



O Sr. Lucas Pires (CDS): - Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Primeiro-Ministro, Srs. Ministros, Srs. Conselheiros, Srs. Juízes do Supremo Tribunal de Justiça e da Comissão Constitucional, Srs. Constituintes, Sr. Cardeal Patriarca, Srs. Deputados: Há um ano, uma nova Constituição política encerrava, entre nós, um período revolucionário perturbado e abria o caminho à liberdade e à esperança de todos os portugueses num futuro consciente, ordenado e pacífico - tal como para os cristãos, no lance que separa o Velho Testamento do Novo Testamento.
É esta Constituição-menina que tão mal passara no ventre da mãe e que a ferros o 25 de Novembro ajudara a sair, que hoje tem, sem dúvida, pelas dificuldades do próprio parto, o direito a comemorar o seu primeiro aniversário.
Não se trata, evidentemente, de lhe erguer uma estátua! Até porque seria lastimável acrescentar a todo o rigidismo com que a criança foi vestida, jurídica e ideologicamente, a goma que as atitudes laudatórias sempre transportam. Do que se trata é de festejar a mística constitucional que o seu simples nome de baptismo - Constituição - já envolve e que foi um primeiro sinal de convergência das forças democráticas contra a mística revolucionária das forças totalitárias.
É por essa unidade das forças democráticas na intenção de dar uma Constituição democrática a Portugal que o CDS, em primeiro lugar, se associa a esta comemoração. E associa-se assinalando que a considera, não só uma evocação, mas também um aviso a todos os inimigos da soberania do direito e da Constituição que agitam e promovem a tirania dos governos de partido, dos governos de facto, dos governos de um indivíduo ou dos governos de uma casta.
Infelizmente, o chamado «processo revolucionário» viria a descobrir formas de assegurar a sua continuidade para além da entrada em vigor de Constituição. É uma atitude que, de resto, explora utilmente o facto de a Constituição ser, em grande parte, «o espelho mágico» da Revolução, através do qual, como nas histórias infantis, se quis fazer bonitas as coisas feias... A Constituição veio entre nós depois da Revolução, ao contrário, por exemplo, do que aconteceu em Espanha. O direito veio depois dos factos e não pôde, assim, constituir a própria substância originária da revolução democrática.
Por isso, a Constituição reflecte a luz mas não ilumina. É como o produto de uma inteligência abúlica ou estupefacta, aliás de certa modo tradicional e dominante entre nós, que descreve, analisa e critica normativamente os factos que a antecederam ou aferiram, mas não está fundada nem anima a inteligência criadora capaz de dirigir, seleccionar e transformar os factos que lhe sucedem. É daí que resultam tendências, quer para a desorganização quer para a anomalia, que têm na vida corrente portuguesa as traduções que todos conhecemos.
A razão que nesta Constituição fala é, por tudo isto, uma razão impura, como que incarnada num mitológico bicho de sete cabeças. Não é, por outras palavras, a razão pura, a que é, no sentido liberal e democrático, a razão de todas as razões e não só a razão de algumas razões, como foi a razão revolucionária, aliás estropiada e privatizada. É assim que esta Constituição foi transformada numa parte, e continua a haver quem a queira transformar por inteiro na Constituição fêmea de uma revolução macho.
Não é de estranhar neste contexto que o "inimigo principal" da mística constitucional e do poder da Constituinte, como órgão supremo da Revolução, venha depois, depois do 25 de Novembro, depois da própria Constituição aprovada, considerar esta Constituição como o processo revolucionário apenas provisoriamente congelado, isto é, como o patamar de eventuais avanços revolucionários e como a área-tampão contra desenvolvimentos futuros de sentido mais democratizante e mais liberalizador. Não é de estranhar que esses mesmos hoje apareçam a brandir a Constituição, ora como um "livrinho vermelho" lusitano, ora como um velho fantasma regressado para dissuadir projectos europeístas e conquistas liberais.
A curiosa metamorfose é esta: aqueles que eram e são partidários do mais completo positivismo político, aqueles para quem até a liberdade e a igualdade são apenas meios do seu próprio poder, esses são, hoje, os mais lampeiros arautos do positivismo jurídico e do integrismo fetichista da letra constitucional.
Não é por acaso que, hoje, os que haviam sido mais revolucionários que a Revolução se façam de mais constitucionalistas que a Constituição. Não é por acaso que partidários extremos da revolução acabam por querer afinal que a Revolução esteja para trás de nós. Não é de estranhar! Pelo contrário: é uma atitude muito elucidativa! É que, ao defender à outrance a Constituição como um museu de factos normalizados, estão essas forças a supor implicitamente que, do ponto de vista maioritário, a Constituição do actual futuro português deveria ser outra pois que, afinal, essa escolha do revoluto embalsamada é uma rejeição da liberdade constituinte futura do povo português! Mais: não pressentirão essas forças que a Constituição Portuguesa é hoje já ideal e realmente outra que não a mesma, pelo menos mais crescida no seu dinamismo, na sua vocação, e no seu espírito?
Senão, vejamos:
a) Em primeiro lugar, a Constituição tem ainda muito de apropriação exclusivista da Revolução, que separava abruptamente os vanguardistas e as maiorias, os classistas e os anticlassistas, a esquerda e a direita, e até o sector público e o sector privado, discriminando, permanentemente, a favor dos primeiros contra os últimos. O funcionamento dos mecanismos eleitorais permitiu, é certo, que a Constituição se tornasse mais integração do que exclusão. Mas tal integração refere-se mais, ainda, às pessoas do que às ideias e aos bens sociais e, mesmo em relação às pessoas, só por via eleitoral tal integração tem obtido realização. É, assim, indispensável caminhar no sentido de considerar a Constituição como instrumento de integração de todos os valores, bens e pessoas portuguesas, e não como instrumento de exclusão de umas contra as outras.
É que a história moderna não passa o tempo a olhar para a direita e para a esquerda. Não é de lado que tem os seus limites. Os seus limites estão atrás e à frente, no passado e no futuro, porque resultam de uma integração ou exclusão, sim, mas no ritmo da história europeia a que pertencemos! É à frente que se vencem as margens e não é, pois, à beira destas que é preciso estar em guarda!
b) Em segundo lugar, a Constituição coloca-se mais na perspectiva da ideologia do que na da acção. Oriunda de uma "Santa Trindade" socialista, com o seu pai, o seu filho e o seu espírito santo...
Risos.
...está inquinada por um "complexo de esquerda" que nela funciona como peso, em vez de, como alavanca de libertação. Na fase revolucionária a que corresponde, o fenómeno é, em si, explicável. Da facto, o marxismo é a mais simples e a mais positivista das resposta para a insegurança que o subdesenvolvimento cultural sente perante o mundo moderno. A entrada súbita e revolucionária neste ciclo histórico inclinou, assim, algumas forças – nem todas marxistas – à procura fácil do protectorado ideológico e provisório do marxismo.
Hoje, não só esta situação de insegurança política radical está ultrapassada, como, além disso, a primazia do viver e do pensar sobre o pensamento e a dogmática começam a ser patentes. Temos quase meio milhão de desempregados e uma impossibilidade manifesta de executar a parte mais generosa da Constituição – a que a todos reconhece o direito ao trabalho! As condições de vida degradam constantemente o estado de cumprimento de todos os direitos sociais da Constituição. E é caso para dizer, ao fim de mais de dois anos de ideologia socialista, que é finalmente tempo de pensar a sério nos pobres... (continua)

(4 de Abril de 1977, in Diário da Assembleia da República n.º 95, p. 3109 a 3213)

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