quinta-feira, 6 de março de 2008

Debates Parlamentares: Programa do Governo PS-CDS (1978)

O Sr. Lucas Pires (CDS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Após quatro dias de debate e perante um Programa de três centenas de páginas, não pode deixar de se experimentar um certo desalento verbal. O ambiente é próprio, porventura, a compreender como a sombra dos números começa a embaciar o brilho das palavras. Porventura estamos, de facto, em Portugal, no momento em que os números se tornam reais, em que os números se sentem e se mastigam – o momento em que os números da inflação, do deficit externo, da desvalorização do escudo, saem dos cálculos, das estatísticas, das contas dos economistas e invadem, com a sua brutal franqueza, a vida corrente dos Portugueses.
É curioso notar a este respeito como o Dr. Mário Soares, aquando da sua apresentação televisiva do «pacote 2», ainda teve o cuidado de remeter os números para o rodapé da comunicação. Mas eis que, incontidamente no dia seguinte, eles escorregam da manga larga do seu Ministro das Finanças, perante o mesmo auditório e à mesma hora. E, pronto, era a sua primeira aparição pública. Então começou muita gente a perceber que os números não eram apenas os hieróglifos dos economistas, que os números são a própria seiva da vida económica moderna. As palavras começavam a perder a guerra com os números, embora se admita que elas próprias haviam constituído, por sua vez, uma etapa vitoriosa, contra o puro activismo da rua, em que se traduzira a fase precedente desta revolução, fase de que a própria Constituição – como revolução escrita – só a custo conseguira emergir.
Era ainda a fase em que palavras como comunismo, socialismo, social-democracia, democracia-cristã, eram verdadeiros exércitos de letras. A própria economia era, então, sobretudo, uma economia literária. Basta dizer que o primeiro plano de economia portuguesa não era quantificado e que, suprema e máxima ironia, a circulação monetária era, sobretudo, a circulação de letras. Embora, também aqui note-se, houvesse, apesar de tudo, um progresso, pois que na fase anterior, da revolução na rua, os números eram considerados um valor burguês e por pouco não se procedera, como o fizera Fidel Castro, à suspensão da contabilidade.
Risos do CDS.
De resto, o que era esta paixão das palavras senão também a compreensível recusa activa do enorme silêncio em que se vivera durante cinquenta anos?
Eis, porém, que o ciclo das palavras se retrai e se abre o ciclo dos números. Suponho que, em grande parte, foi isso o que quis dizer Mário Soares quando aqui confessou que não estava em causa consumar de imediato o socialismo, o que estava em causa era a economia, a democracia e tudo o que é essencial para o maior número possível de portugueses.(...)
Repare-se, aliás, no facto de a alternativa entre socialismo, comunismo, social-democracia e democracia-cristã ser cada vez menos agitada, e em lugar dela tomar crescento relevo a opção alternativa entre presidencialismo e parlamentarismo. É um fenómeno que assinala muito bem como a questão principal já não é das alternativas entre ideias políticas, mas sim de entre modos de governo efectivo! Já não é a questão da escolha pura, mas sim a questão da eficácia. Já não é a questão do país transcendente, mas a do país real.
Ora, entre o PS e o CDS não há nenhuma comunidade nominalista e é por isso que a objectividade do acordo entre eles pode ser mais objectiva do que a de qualquer dos restantes acordos imagináveis.
Vozes do CDS: - Muito bem!
O Orador: - A mera constituição de uma maioria significa que o Poder não está permanentemente a concurso, que os projectos de lei nascem inteiros e que não cheguem à Assembleia como quem pede a uma incubadora para lhe completar as formas e lhe imprimir o sexo.
Risos do CDS. (...)
O Orador: - O Governo pode, ainda, passar a ser mais realista e eficaz, pois passa a integrá-lo o partido português que menos deve ao Poder e que representava mesmo uma espécie de país real virado ao Estado oficial, uma espécie de país liberal virado ao Estado «socialista». (...)
Evidentemente, eu não creio que estejamos num mar de rosas e que a vida deste Governo vá ser uma marcha triunfante, entre alas engalanadas, a caminho acelerado de um bilhete-postal do tipo da «grande e próspera nação». Desde logo porque os problemas do País não são apenas problemas de Governo e porque a salvação já não vem pelo verbo – deste Programa ou de outro – como poderia ter vindo no princípio.
O pessimismo tem os seus argumentos. Dir-se-ia, por exemplo, que, de um acordo de governo que resulte basicamente de um apelo dos números se pode resvalar para aquilo que se quis até evitar – a pura gestão, a lógica tecnocrática, a realizar, ainda por cima, por quem não foi escolhido em função de tal lógica. O Programa que nos foi apresentado terá até porventura ressaibos desse tecnocratismo e pode mostrar-se mesmo um pouco desanimador para qualquer inimigo das sebentas. Dir-se-á até que a solução é em si mesmo demasiado geométrica, negligencia tensões reais, abstrai de que somos um país afectivo, ou de, como diz Pessoa, apenas «somos tudo ou nada», e esqueceria, ainda e sobretudo, que é também de uma esperança, e não apenas de um programa que se precisa, que é, mais que qualquer outro, um país de pessoas mais que um país de números. É preciso estar prevenido disto tudo e responder. Principalmente é preciso não ter a tentação de pensar que a resolução dos problemas portugueses se há-de esgotar na pura gestão da situação dada ou existente. É preciso, sim, aceitar que a aceitação das instituições dadas e a assunção da responsabilidade por elas é a primeira condição para a sua transformação democrática no sentido de uma maior liberdade, operacionalidade e eficácia dessas mesmas instituições. A nossa perspectiva não é, pois, a situacionista. Na sua própria origem esta fórmula de Governo assenta, de resto, numa vontade intensa de alterar profundamente as condições reais da vida política portuguesa, e se, de crítica é passível, é até de um excesso de voluntarismo. Introduz tanto um outro modo de olhar politicamente como uma outra direcção para o olhar, menos vesga e mais rasgada, deixando aberto o caminho em frente e corrigindo certo estrabismo «esquerdista» que ainda por aí pulula. (...)
Quando falamos de humildade, temos de notar, ainda, que tudo é cada vez mais connosco e com todos nós. Que os balões de política externa e o ópio da diversão externa cada vez empolgam menos e não são por si só suficientes. Julgo, de facto, que este Programa e este Governo hão-de marcar, também, uma espécie de regresso a casa, de regresso à estima e à consideração de nós próprios. Precisamos e muito, é certo, de ajuda externa. Estamos ainda a ser prezados e obsequiados por toda a Europa como se fôssemos a nova fronteira redescoberta do velho continente. Mas temos de evitar a tempo transformarmo-nos no seu far-west. Temos de cuidar cada vez mais daquilo que Rousseau, opondo-o ao chauvinismo do «amor-próprio», chamava o «amor de si». Se todos nos responsabilizarmos e empenharmos como tais, pondo de pousio os nossos exércitos de letras, estaremos todos – como suponho que é empenho comum – a evitar que os abutres tenham razão. (...)

(13 DE FEVEREIRO DE 1978, DAR I SÉRIE-NÚMERO 39, pags. 1421 a 1425)

Um comentário:

Anônimo disse...

Como era rica a linguagem da classe política...olhando para os de hoje...que depressão.
jac
ponte de lima