segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Debates Parlamentares: Estatuto da Oposição (1977)


Sr. Presidente: Tem a palavra o Sr. Deputado Lucas Pires para uma intervenção.
O Sr. Lucas Pires (CDS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: É evidente que o Estatuto de Oposição não será exactamente uma lei como as outras. De facto, trata-se, por um lado, de concretizar normas das mais fundamentais da Constituição Política e que constituem a cúspide da liberdade política e os alicerces do pluralismo e trata-se, por outro lado, de esconjurar velhos demónios seguidistas e unitaristas que, em Portugal, têm perseguido a democracia desde a sua mais remota história. Por uma e por outra destas razões, o Estatuto de Oposição virá a ser, com certeza, uma lei fundamental da democracia portuguesa!

De facto, se se pode falar de um mal português, na mesma linha em que Alain Peyrefitte falou recentemente de um mal francês, podemos considerar a tendência para confundir Estado e governo e mesmo, ulteriormente, Estado e chefe do governo como um dos mais negativos handicaps da moderna mentalidade portuguesa. É, antes de mais, esta configuração político-cultural que a ideia de um Estatuto de Oposição poderá ajudar a remover e superar.
No fundo, a confusão entre governo e Estado significa que a essência do princípio monárquico, tal como o concebia o ancien régime como identificação absoluta entre um só poder e o Estado, nunca foi, entre nós, até hoje, completamente erradicada. Numa comparação mais aggiornata, poderia, também, dizer-se que o nosso ancestral modelo de governo-Estado e a conhecida fórmula autoritária do partido-Estado não estão tão longe um do outro como isso. O Estado-governo pode, até ser, apenas e só, uma das «vias originais» do Estado-partido. Por não ter tido o Estado outra identificação ou outro medium, a não ser o do Governo, é que tudo o que de decisivo há na nossa história moderna se teve de acabar por passar entre o governo e a rua, ainda que, quase sempre, através dos quartéis. É também a mesma identificação Estado-governo que gera entre nós, com tanta facilidade o domínio psicológico do situacionismo e do unanimismo, e quantas vezes, quando se está mesmo a ver que é a unanimidade no desastre. O autismo, de um lado, e a vertigem, do outro, ora o adiamento, ora a precipitação, puderam ser, assim, para nosso mal, os andamentos «constitutivos» do novo ritmo histórico-político moderno, tudo por falta de uma noção de divisibilidade, equilíbrio e controlo do poder.
Neste contexto, a oposição teria obrigatoriamente tanto de diabólico como o governo de sagrado, tanto de impotente como o governo de poderoso. Seria, de resto, em vão, esperar que um poder, onde a componente militar politicamente activista fora sempre tão decisiva, pudesse compreender a noção de oposição e, consequentemente, a noção de alternância real no exercício do poder! A verdadeira oposição era convidada a aparecer, assim, apenas depois da decisão tomada, depois do poder exercido, com inevitável espírito de contestação, em bloco e a partir de fora.
A um governo de vivas só podia naturalmente corresponder uma oposição de morras! Daí que a violência ou a burla se tornassem perspectivas normais do governo, a revolução e a guerra civil perspectivas igualmente normais da oposição. A intenção essencial do projecto do CDS é, pelo contrário, a de romper caminho para uma vida política em que a oposição esteja antes e dentro do próprio processo de decisão politica, como um sujeito normal deste, detendo a faculdade de contrapor uma direcção política geral à direcção política do governo, a respeito de todas as opções públicas e, partilhando, de facto, o exercício de soberania prática do Estado.
A oposição passa a ser encarada, pois, como pré-governo e não como pró-revolução, ao contrário do que infelizmente ainda aflora, por vezes, em certo tipo de discurso dos membros do partido do governo quando não mesmo, até, de alguns candidatos potenciais a aliados desse governo.
A incorporação da oposição no processo político é que corresponde tanto ao critério intersubjectivo e, portanto, democrático [...], como à possibilidade de reconstituição permanente da verdadeira representatividade política. É que o poder, hoje, já não pode representar uma espécie sociológica vitoriosa contra outra. Deve antes corresponder ao centro de gravidade, resultante do encontro, da tensão e do diálogo entre as múltiplas vontades e interesses colectivos relevantes.
Nesta visão, todo o poder é hoje necessariamente ambidextro e supõe uma equivalência ou parificação potencial dos partidos em democracia, nomeadamente, por exemplo, quanto ao poder informativo do Estado. A identidade do poder democrático é dual: não há a mesma dualidade que há entre um homem e um espelho, muito menos da que há entre certas nações e um muro, mas a dualidade que há entre cada homem e o outro e que corresponde à fisiologia essencial e elementar da sociedade humana.
Só assim ficará inteiramente para trás uma época do jacobinismo. Jacobinismo que continua, ainda hoje, imperceptivelmente latente na maior parte das estruturas e na mentalidade político-sociais dos países latinos, através da figura do partido dominante ou de partido carismático que reclama identificar-se, mais do que os outros, com a Constituição, e considera legítimo identificar-se oficiosamente, mais do que outros, através de controleiros seus com a própria Administração Pública. Partido dominante que em França diz que uma vitória da maioria de esquerda equivaleria à revogação da Constituição Francesa da V República e que, em Portugal, diz que a vitória da oposição ou a substituição do governo equivaleria à revogação da nova Constituição. Partido dominante que até pode ser minoritário como é visível, de maneira relativa, em França e, de maneira absoluta, em Portugal, partido dominante que afinal aceita uma configuração política do Estado em termos que reproduzem inconscientemente a configuração administrativa do mesmo Estado, isto é, em termos de unidade e hierarquia natural dos partidos perante a Constituição. O que tudo mostra bem a pesada herança que ainda nos vem do ancien régime monárquico absoluto. Partido dominante que, no extremo, integraria uma nova e paradoxal figura: a do partido único democrático. Tudo isto podendo inspirar a pergunta: será que nós queremos que o povo sinta que, para haver um novo governo, é preciso fundar uma nova República?
O Estatuto de Oposição pretende pois, ao mesmo tempo, uma alteração da mentalidade e uma alteração das estruturas do poder em Portugal. Se quiséssemos escalonar, historicamente, este programa diríamos que ficam para trás, em primeiro lugar, as concepções teológicas que pregam a eliminação ou completa marginalização do adversário político e dividem em dois hemisférios opostos toda a política falando, ora da revolução contra a reacção, ora de proletários contra burgueses, ora de arianos contra judeus, ora de amigos contra inimigos, ora de situacionistas contra oposicionistas. Com o Estatuto de Oposição ficam para trás, também e em segundo lugar, as concepções onde ainda há um resto de metafísica e ideologismo - que são, aliás, as duas formas de teologia laica - as quais defendem a subordinação do adversário político e hierarquizam a esquerda e a direita por acreditar na função iluminista da primeira e no carácter obscurantista da segunda.
A divisão entre oposição e governo é a única verdadeiramente positiva, a única que não está afectada por maniqueísmos morais, a única que exprime a base essencial do pluralismo equitativo e pacífico, a única que joga com a alternativa das capacidades mais do que com a alternativa das ideologias, a única para quem a democracia é mais um concurso de bons governantes do que embate de hostes mentais, a única para quem o adversário político não é objecto a eliminar ou subordinar, mas parceiro na concorrência, na cooperação, ou, até, na coligação política.
A alternativa oposição-governo é a única que só divide relativamente e respeita, pois, a unidade no essencial, a unidade nos valores democráticos. As outras dividem absolutamente e não reconhecem qualquer outro critério de unidade a não ser elas próprias.
Este projecto do CDS é, também, obviamente, uma forma de enterrar algumas sequelas político-culturais do regime deposto em 25 de Abril. A oposição não poderá ser mais o espantalho que o poder hasteia para defender a seara, ou a compère eleitoral do seu star-system, ou o bouc émissaire das incapacidades e frustrações do seu mando. A própria expressão incorporação (da oposição) é o contrário literal do corporativismo do poder! Um Estatuto de Oposição, tal como um tête-à-tête permanente entre governo e oposição, permitirá, sem dúvida, tornar mais transparente o debate político, evitando a décalage entre aquilo que parece e aquilo que é, décalage que correspondia a um aspecto substancial e confesso da filosofia do salazarismo.
Aliás, um Estatuto de Oposição, tal como o propusemos, é, também, função das exigências de qualquer democracia hoje em dia. De facto, se toda a democracia é uma divisão ou análise, primeiro, e um equilíbrio ou síntese, depois, essa divisão a essa análise não se podem, hoje, situar apenas ao nível constitucional como «separação de poderes», e como equilíbrio político entre os mesmos poderes, através, nomeadamente do Presidente da República. Tal divisão e tal equilíbrio tem de ser procurado também ao nível do governo e da própria Administração e, até, no campo dos próprios poderes sociais, sindicais ou de outro tipo. Talvez seja mesmo no plano do governo e da Administração que se jogam hoje as questões da democracia e da liberdade. Isto por duas conhecidas razões: por um lado, a do enorme aumento do poder da Administração e do governo; por outro lado, a da crise dos parlamentos, que é, afinal, a crise da oposição, que antes se formava naturalmente no seu seio, quando os Deputados não estavam integrados por disciplinas parlamentares e novas maiorias espontâneas eram possíveis a todo o momento. Daqui que se tenha tornado necessário encarar por toda a parte um outro conceito de oposição que implica, nomeadamente, meios de acção extraparlamentar e, mesmo, possibilidade de intervenção da oposição em certas decisões críticas do governo e da Administração que tenham a ver com o Estado como um todo, ou com a política como actividade de conformação de planificação da vida social.
Em Portugal, a necessidade de um Estatuto de Oposição corresponde, ainda, a exigências, actuais e específicas, quer conjunturais, quer estruturais, muito importantes.
Sob este aspecto, aliás, destaca-se desde logo como a prática do CDS tem sido já até agora premonitória de um verdadeiro Estatuto de Oposição democrática. Em tudo nos temos, de facto, comportado não como antipoder, mas apenas como poder de oposição. Não pomos a Antígona que diz sempre não, porque também não pomos a hipótese de, no governo, vir a ser apenas a Antiantígona. Julgamos, assim, ter ajudado, pelo exemplo, a transformar interiormente o nosso país e a própria atitude clássica do governo perante a oposição. Queremos, porém, que se vá mais além, assentando em bases definitivas e claras tal progresso. Julgamos, por exemplo, que Portugal não é só um problema de política externa ou diálogo com potências estrangeiras como o Governo parece supor; que Portugal não é só um problema económico-social ou de «diálogo» com a Inter e a CIP como o Governo também parece acreditar; que Portugal não é só um problema militar ou de «diálogo» com os chefes do exército como durante os «pactos». Julgamos que o grande, o maior e o primeiro dos problemas portugueses é ainda um problema político, isto é, um problema de diálogo entre as duas forças mais gerais, mais concretas que, colocadas no centro nevrálgico da opção política, utilizam uma equivalente linguagem de diálogo -as forças do governo e as da oposição.
Julgamos, ainda, que este Estatuto de Oposição ajudará a melhorar quer a qualidade moral quer o funcionamento prático das nossas instituições.
Embora o Estatuto não possa aspirar a um sistema de alternância bipolar do poder, devido à coexistência entre nós, de dois tipos de oposição, um dito da «democracia popular» e outro de «democracia liberal», a verdade é que há certos progressos que podem ser feitos do ponto de vista da própria unificação quer das relações das oposições entre si quer das relações destas para o governo e o Presidente da República.
Em primeiro lugar, a oposição ou parte da oposição pode, no quadro deste Estatuto, conseguir, mais facilmente, quer em pontos concretos quer em questões metodológicas da democracia como a de saber se é possível constitucionalmente um governo minoritário - uma maior unidade de pontos de vista, porventura, susceptível de inspirar outras maiorias e alternativas de governo.
Em segundo lugar, parece-me que, em Portugal, cada partido funciona ainda muito na perspectiva de si próprio e da exclusiva manutenção e expansão do seu particular poder, seja ele partido de governo ou partido de oposição. Esperamos, por isso, que o Estatuto de Oposição force os partidos a pensar e agir em termos mais gerais, em termos de oposição e de governo e, portanto, em termos mais próximos do interesse nacional.
Em terceiro lugar, a estrutura das relações partidárias está, ainda, mais marcada por tiques de resistência - resistências do passado, como a antifascista, e a antigonçalvista; ou resistências imaginárias como a antiesquerdista ou a antidireitista, mais do que uma vocação de abertura e operacionalidade do governo ou da oposição que, por si, determinaria uma colaboração dos partidos em função de visões estratégicas, políticas e económicas comuns, mais do que uma vocação de abertura e operacionalidade da resistência, combate ou luta.
Parece mesmo manifestar-se, por vezes, uma esquisita e irresponsável auto-satisfação das organizações partidárias consigo próprias, que é, sem dúvida, uma forma de provincianismo democrático. A noção de um Estatuto de Oposição pode-nos ajudar a superar tal situação. Aliás, o pacto social de que tanto se fala será dificilmente levado a bom porto sem a correcta definição do pacto fundamental a ele anterior no nível da crise política que antecede e subordina a crise sindical.
Os próprios partidos se haviam constituído em função de uma espécie de frente popular de governo, diluída, embora - constituída por três partidos de esquerda -, apenas ficando de fora, para «inglês ver», um partido de centro, tudo num cenário próprio de tempos revolucionários. Ora, hoje, a dinâmica do poder em Portugal é outra. A frente popular ficou para trás, o centro de gravidade deslocou-se e procura-se, pelo contrário, a estabilização e a liberalização do sistema, pela integração do maior e mais apto número de forças até obter um equilíbrio duradouro de todas as tendências. O Estatuto de Oposição, pelas razões já aludidas, pode afinal contribuir para uma actualização e revisão do sistema de relações partidárias, quer directamente entre elas quer através de órgãos de coordenação política geral, como o Presidente da República, com quem a oposição deve manter relações directas e formais.
Um último ponto: o Estatuto de Oposição e o espírito de concurso público pelo governo que nele está subjacente é não só emulativo para o governo como se pretende, além disso, que seja moralmente regenerador. Sabe-se como, entre nós, a cunha, o compadrio e o apadrinhamento, pessoais e ideológicos, que tem a ver com o patriarcalismo residual do poder campeiam, como sempre, e hoje não menos do que antigamente. Uma séria acusação de favoritismo macula a imagem de muitas decisões públicas. A verdade é que o favoritismo é o recíproco, ou gémeo, moralmente idêntico, do saneamento ideológico.
Esta clandestina e anónima forma de poder pessoal é mais verrinosamente antidemocrática do que qualquer outra. Sabe-se, por exemplo, que a primeira qualificação para se ser gestor público é estar do lado do governo... O tratamento «privilegiado» que uma importante empresa pública deu a certa personalidade política recentemente ou a revogação de um despacho ministerial de reintegração de um administrador de instituição com eminentes responsabilidades públicas por jogo de influências políticas e pessoais, são exemplos recentes que tenho presentes. O mais repugnante é que a tudo isto se chama política, chegando-se ao ponto de considerar que não é bom político quem não aproveita ou não sabe fazer destas coisas... E quando hoje Carter fala de uma new morality ou d'Estaing se refere ao fim da politique politicienne, o menos que se pode dizer é que estamos pouco embalados para sair do nosso antigo mundo...
Embora ele não seja o único culpado de uma mentalidade que vem de trás - teme-se que ele, que tanto critica os caciques locais, represente por vezes o papel de um supercacique, de um cacique dos caciques.
O Sr. Cunha Simões (CDS): -Muito bem!
O Orador: - A todos os níveis do Estado é preciso substituir o sistema de influência e da cunha pelo sistema do concurso público! Quando é que se extinguirá, de uma vez, a «pesada herança» de um regime mental de morgadios, de capitanias, de «clientela à romana» ou de feudalismo larvar que parece ter-se prolongado, entre nós, até hoje? Não me parece haver dúvidas de que para o poder, uns continuarão a ser filhos e os outros enteados, enquanto governo e oposição não tiverem o mesmo estatuto político em Portugal.
Este projecto é vasto. E quem terá ainda coragem para pensar que as reformas profundas se fazem por decreto ou lei?
Reforma é, como diz Ortega y Gassett, criação de hábitos novos. O que nós esperamos, sobretudo, é que este Estatuto a ser aprovado, possa contar, pois, com os hábitos novos de todos os partidos de governo e de oposição aqui representados nesta Câmara...
Aplausos do CDS.

(11 de Maio de 1977, in Diário da Assembleia da República, nº107, págs. 3650 a 3653)

2 comentários:

Unknown disse...

Francisco Lucas Pires via muito para além da linha do horizonte, enquanto outros que pretensamente o julgavam acompanhar nas lides políticas se afadigavam, ingloriamente, à procura dos óculos de ver ao perto que, para mal de Portugal, nunca conseguiram encontrar. Obrigado por relembrarem as lúcidas, excelentes e sempre actuais palavras do Vosso Pai.

Jacinto Lucas Pires disse...

Pois é, fazem falta óculos de ver ao longe...
Muito obrigado, um abraço