sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Um Programa de Governo para o Primeiro Ministério da Cultura em Portugal (conclusão)

Dir-se-á que, como resulta do Programa, se trata de um conjunto muito ambicioso de propósitos. Mas é, sem dúvida, este o domínio onde temos mais para defender e onde mais temos para conquistar.
Em matéria cultural julgo, aliás, que só se pode ser ambicioso. Estamos aqui perante o que é mais geral e comum e perante o que diz respeito à própria permanência do país. É só aqui, em matéria de cultura, que Portugal continua a ser mais vasto do que a sua geografia. De resto, a qualidade e até a grandeza são apanágios da obra cultural. O epifenómeno não é a cultura, o epifenómeno é o poder, e se podemos ter várias ideologias de poder, temos, porém, uma só cultura.
A resolução dos nossos próprios problemas políticos passa, pois, pela redescoberta de um consenso cultural para aquém e para além das disputas ideológicas de que, aliás, muitos estão cansados. Julgo, por exemplo, que um grande festival de música que, aliás, falta entre nós, poderia ser, de novo, uma obra de reconciliação e renascimento mais importante do que muitas acções políticas e económicas. Quem não acreditará que a pedra filosofal para os nossos engulhos só pode ser uma grande obra cultural, inclusivamente com alguma concretização física?
Tal obra só poderá ser feita, porém, com sentido do comum, com seriedade e com verdade. A Ciência e a Cultura exprimem o mais vasto sentido do comum e a mais objectiva procura da verdade. E é por isso que, se é preciso mais dinheiro, será também preciso mais rigor, quer intelectual, quer moral. A moral, a própria moral cívica, é, pois, um pilar da obra cultural a erguer. Se conseguirmos esse nível de consciência, talvez até possa haver milagres apesar das dificuldades económicas. Não o milagre das rosas, mas, por exemplo, um “milagre” como o das Torres do Tejo, hoje anunciado pelo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa. E, pergunto: e se sobre o chão das ex-futuras Torres do Tejo fosse agora, ou amanhã, possível erguer o grande “atelier” cultural do país?
Não tenho nenhuma ingenuidade ao dizer isto, embora aceite que se trate de optimismo. Sei que é difícil ser Ministro na zona onde a crítica é a própria vocação e a liberdade o próprio método. Sei também que a cultura não se “ministra” e que não é um Ministro que fará a cultura ou lhe dará tudo o que falta. Há quem diga também que, além do dinheiro, faltará o tempo e que há no meio disto tudo demasiada gente “ausente” ou alheia, em termos de estado de espírito. Aliás, também aqui a batalha parece ainda ser mais a da repartição do que a da criação.
Muito pode faltar – é certo – mas não espero desfalecer nestes propósitos e estou neles empenhado com a consciência do que deve ser um Ministério da Cultura num país a caminho de novecentos anos de cultura, mas que tem hoje, outra vez, um desafio de novo inteiro e global para resolver.
Sabemos que no caso do Ministério da Cultura, este juramento perante o país que é a assumpção de qualquer responsabilidade de governo, esse juramento é também, ao mesmo tempo, um juramento estendido no tempo a todas as gerações, perante o máximo do passado e o máximo do futuro que temos! Assumo essa responsabilidade com a consciência de que num país como o nosso, tão vasto no tempo e na acção cultural e que sobre tantos aspectos é ele próprio uma obra de arte, a tendência pode ser para a mera passividade, a resignação ou a contemplação cultural.
Mas é também verdade que as novas gerações querem redescobrir culturalmente o seu país, querem redescobri-lo a palmo e com esforço, que nossa paz cívica depende, cada vez mais, de uma compreensão cultural de quem somos. É preciso fazer vir à tona uma certa ideia comum sobre quem somos. É que só um país consciente e cioso da sua força cultural comum pode sentir a segurança indispensável ao progresso.
São estes, com sinceridade, os nossos propósitos e as nossas esperanças.


(texto de apresentação do programa do 1º Ministério da Cultura e da Coordenação Científica na Assembleia da República em 1982 - in "Com Portugal no Futuro", de Francisco Lucas Pires, IDL, Lisboa 1985)

Um comentário:

José Leite disse...

«A moral, a moral cívica é um pilar da obra cultural a nascer...»

Nem sempre concordei com Francisco Lucas Pires, nem sempre fui seguidor da sua conduta partidária.
Não é por «necrolatria gratuita» que quero afirmar fazer falta a sua presença, a sua frontalidade, a sua idiossincrasia.

Nos terrenos da cultura foi sempre um ícone, um baluarte, um porta estandarte brilhante. Polémico q.b. não cedeu ao comodismo fácil, não foi um «bicho de partido», soltou as amarras quando se sentiu aprisionado e... voou, voou, voou...

Sem vínculo partidário, mas militante da democracia, quero deixar aqui bem vincado o meu apreço ao homem, à obra e à postura cívica do cidadão Francisco Lucas Pires.

Com ele a honra voava mais alto!