sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Um Programa de Governo para o Primeiro Ministério da Cultura em Portugal (parte II)

As questões são muitas e queria aqui apenas citar aquelas que correspondem a um mínimo de exigências.

Em primeiro lugar, o Orçamento. Se a Cultura e a Ciência são os bens mais valiosos é estranho que sejam os mais pobres e os mais mal vestidos. A Cultura tem 0,26% do Orçamento. Precisamos de atingir o 1% no médio prazo. Tem de ser um objectivo comum a qualquer Governo, tanto ao actual como aos seguintes e é um objectivo genérico, hoje, na Europa. Aliás, na Ciência os números actuais são igualmente aterradores: gastamos cerca de 0,3% quando as Nações Unidas recomendam 0,6% para países menos desenvolvidos. Gastamos nisto um terço do que a Grécia gasta. É certo que vamos fazendo flores, mas quem esperará nestes domínios fazer o milagre das rosas ao contrário? A este propósito, talvez se possa evocar a história do próprio Brecht ao chegar à República Democrática Alemã. Quando lhe perguntaram do que é que precisava mais, ele respondeu – “Dinheiro”. Voltaram a perguntar-lhe: “E a seguir”? E ele retorquiu outra vez: “Mais dinheiro”...
Não podemos sequer ignorar que a pletora dos Ministérios da Cultura é também à sua maneira o recíproco da escassez dos mecenas privados. E o dinheiro, os meios em geral, são, portanto, um elemento fundamental da política a desenvolver.

Em segundo lugar, um mínimo são as instalações e os equipamentos.
A Cultura tem o problema de habitação. Por isso é que lhe é difícil respirar o oxigénio da Cultura. Não sei, por exemplo, como é que no meu Ministério da Cultura, onde as pessoas estão apinhadas por vários departamentos, se pode respirar ou sentir o sopro inspirador da Cultura. Onde não há um pequeno teatro, onde não há um pequeno auditório musical, como é que pode passar por aí a inspiração ou sopro da Cultura?
O próprio Ministério da Cultura não pode deixar de ser um equipamento cultural e não o é. É também por isto que temos uma Cultura que arde, em vez de termos uma Cultura que queime. É também por isto que falta o espaço em que todos nos entendamos, por excelência: o espaço da Cultura. Infelizmente até agora a Cultura tem ficado com o que sobra.
No fundo, pensa-se nos bancos, mas não se pensa em criar fundações. Permitir-me-ia mesmo perguntar se não seria terrivelmente simbólico obrigar as multinacionais, que se instalam entre nós, a pagar algum tributo à cultura portuguesa.
Penso sobretudo – e isto é o mais importante neste aspecto – que falta o grande forum da cultura democrática. Não é verdade que falta ainda o próprio emblema físico-cultural do 25 de Abril? Não é verdade que toda a revolução democrática aspira a ter a sua própria “Ágora”? Cada um terá o seu Alto da Ajuda, mas o que é que já temos todos nós juntos como Cultura renovada e comum?
Será possível que todos, em todos os planos, tenhamos a grandeza suficiente para perceber isto?

Em terceiro lugar, outros mínimos são a formação, o estatuto e a segurança das gentes da Cultura e da Ciência. Não pensamos que os artistas só solitários, angustiados e esfarrapados podem ser criadores. Daí, por exemplo, a necessidade já posta em marcha de um regime de previdência social. Não se trata apenas de evitar a proletarização intelectual, não se trata só de evitar que os intelectuais e os artistas passem fome, não se trata só de obter o pão da cultura! Trata-se de alterar o estatuto marginalizado da inteligência que a obriga ora a ser cortesã, ora a ser mendiga, ora a ser alheia e a pôr-se de costas em relação a tudo isto. Não se pode conceber que, por falta de estatuto próprio, o artista não possa exercer uma série de funções no campo da arte. Ou será que Fernando Pessoa tinha as habilitações requeridas para orientar um Arquivo Literário? E, além disso, temos também que dar mais possibilidades de, cá dentro, preparar e ajudar a formar verdadeiras escolas portuguesas nos vários domínios da arte e da cultura, estimulando a formação artística e o gosto por ela.

Em quarto lugar, são um mínimo a segurança e a reanimação do património. Devo dizer a este propósito que tenho, desde já, em meu poder o inventário de todas as obras que arderam na Galeria de Arte Moderna e que, a certa altura, pareceu, ou se disse, não ser possível fazer. Foi-me hoje mesmo entregue tal relatório, após despacho que proferi a seguir à minha entrada no Ministério. Afinal foi possível fazer esse inventário. Afinal queremos que seja possível fazer o inventário artístico de todo o país, da própria obra de Arte que, o seu conjunto, é afinal o nosso país.
Esperemos ao menos que, como o sacrifício de Joana d’Arc, o incêndio da Galeria de Arte Moderna tenha virtudes redentoras em relação às insuficiências actuais. Mas é claro que, se não se for mais longe, o património cultural continuará a arder como uma labareda. Se tal não começar e com o próprio Ministério, em relação ao qual já sabemos que seriam precisas obras no valor de 18.000 contos para que os bombeiros pudessem garantir condições mínimas de segurança, a devastação continuará.
O autoconhecimento do país, a identificação dos bens e valores comuns e a crença na originalidade da cultura portuguesa passam por este empenho em tornar presente o nosso passado. A própria busca desta história nova, aberta com o 25 de Abril, impõe que o passado tenha uma base assente e sólida. Neste plano e para começar é que é preciso organizar a nova distribuição das responsabilidades, quanto ao património, entre o Estado e as autarquias, entre o Estado e as instituições sociais ou a iniciativa particular e reorganizar os próprios serviços públicos do Estado que tratam deste problema. Decisão que já começámos a implementar.
É preciso fazer do património um bem comum e vivo e não apenas o sótão da quinta que herdámos.

Em quinto lugar, as carências respeitantes às grandes infra-estruturas legislativas e administrativas.
O mecanismo orgânico da Cultura só começou a funcionar com o 25 de Abril e é um dos que poderia ainda ser um mecanismo exemplar. É preciso fundar um Ministério; sistematizar projectos e acções e erguer uma unidade de objectivos e estruturas. Na prática é necessário, pois, privilegiar a acção legislativa, as acções de coordenação e os objectivos de longo prazo. Se não for assim, a Secretaria de Estado da Cultura, que já foi reorganizada sete vezes, virá ainda a ser reorganizada mais sete e nunca chegará a estar reorganizada.


(texto de apresentação do programa do 1º Ministério da Cultura e da Coordenação Científica na Assembleia da República em 1982 - in "Com Portugal no Futuro", de Francisco Lucas Pires, IDL, Lisboa 1985)

3 comentários:

Anônimo disse...

A título de curiosidade, gostava de saber se Lucas Pires e Manuel Monteiro tinham alguma proximidade, isto é, se eram aliados dentro do partido ou se por acaso se combatiam. Um bem-haja

Jacinto Lucas Pires disse...

Digamos que o nacionalismo populista que, a dada altura, Manuel Monteiro encabeçou no CDS foi uma das razões da saída de Francisco Lucas Pires do partido.
Um abraço

Anônimo disse...

Obrigado pela atençao, sabendo que as personalidades eram diferentes, aos meus olhos, tanto Lucas Pires como Manuel Monteiro partilhavam princípios éticos e morais que por exemplo nao os reconheço em Portas, independentemente dos diferentes projectos para o CDS. Cumprimentos.