sábado, 23 de fevereiro de 2008

Para lá da (meia) verdade politicamente correcta (Parte II)


É também neste enquadramento que se pode situar a noção de “verdade politicamente correcta” e, a partir daí, precisar algumas referências para balizar melhor a situação actual e encontrar vias do desenvolvimento qualitativo da democracia, no sentido da superação dos seus défices actuais. Que “verdade” é então esta?
1. a “verdade” politicamente correcta é “doce” e “mole”, isto é, está mais preocupada com a qualidade de vida, por exemplo, do que com a vida propriamente dita. O seu compromisso é aliás, mais com a felicidade do que com a verdade. Por isso não quer incomodar. Segundo um sociólogo americano (R. Inglehart) esta passagem dos valores “duros” aos valores “doces” seria mesmo o correlato da evolução da penúria para a abundância (The Silent Revolution: Changing Values and Political Styles Among Western publics, Princeton 177, e Culture Schiftin in Industrial Societies, Princeton, 1990). É uma verdade a que se chega sem luta e da qual não se parte missionário. Não admira que as instituições do tipo da Igreja e do Exército, guardiões principais dos valores duros, percam, paralela e proporcionalmente, centralidade e peso. A crença em Deus é, neste ambiente, como nota um jesuíta e sociólogo belga Jan Kerhops (Tensions entre échelles de valeurs en Europe, Lumen Vitae, 1994/3), menos popular como Deus Pai, instância do último julgamento, do que como Deus protector e solidário, dir-se-ia, paradoxalmente, maternal.
2. é uma “verdade de situação”, isto é descartável, dúctil ou volúvel, quase como um “transformer”. Refere-se mais a tendências do que a princípios. É provisória e reconhece-se nas sondagens mais do que nos tratados de filosofia moral ou através de programas políticos. Não aspira a longo prazo. A política tornou-se menos “programática” e mais “pragmática” e o próprio direito se tornou “reflexivo”, interdependente do destinatário e do endereço.
3. esta verdade política é mista, pública e privada ao mesmo tempo. Cada vez distingue e hierarquiza menos valores públicos e privados. A noção de “bem comum” vaza-se, na melhor das hipóteses, num vago “interesse geral”, um valor agregado, aproximando-se da mera soma abstracta de interesses privados. Além disso, a espera pública é infiltrada sistematicamente e torna-se, também por isso, indistinta da privada.
4. esta “verdade” é cada vez mais material (económica e técnica) e cada vez menos espiritual (política e moral). Tem mais a ver com números do que com valores. Por isso, além das sondagens, no plano mais político, também as estatísticas económicas jogam um papel essencial na sua formulação. O princípio da subordinação da economia à política, enfaticamente afirmado na nossa Constituição, sofre um sério revés, se é que não se inverte. Dir-se-ia que, sob este aspecto, o pós-materialismo não poderia ser mais paradoxal. Se subsistem ideologias são, sobretudo, “ideologias económicas”. A política, de resto, não só é função do mercado, como é, ela própria, um mercado, dito eleitoral. Enquanto isto, a polarização de um Estado impotente e em crise e um Mercado juzante e expansivo provoca a erosão do espaço intermédio da “sociedade civil” onde se forjavam tradições, solidariedades e valores e se civilizava ou integrava o mercado. Para lá deste, só o que é técnico e cientificamente objectivável é capaz de reunir consenso, à partida.
5. esta “verdade” é negociada e negociável. Não é mais o produto de uma “vontade geral” homogénea e clara, mas de um diálogo de grupos numa sociedade cada vez mais pluralista. Alargam-se os contratantes e os respectivos filtros negociais, como resulta da importância que assumem os “lobbies” e grupos de pressão ou da multiplicação dos patamares decisórios. E o que se procura não é uma verdade apodítica mas um consenso, sempre parecido, por definição, com a imagem desfocada de certos personagens no último filme de Woody Allen (As Faces de Harry).
Além destes podíamos acrescentar um tópico formal: a “verdade politicamente correcta” é comunicável para poder operar, também em termos de “marketing”, todos os efeitos pretendidos. A minha perspectiva não é, porém, tão pessimista como pode parecer. Por um lado, julgo que os pecados actuais da democracia não são irremediáveis e, por outro, que a situação oferece também novas oportunidades. Muitas crises democráticas que, aliás, chegaram a parecer abissais (Itália, Albânia, Japão), do tipo Titanic político – vieram encontrar possibilidades de regeneração. E também não deixou de ser verdade que em democracia não é possível mentir a todo o tempo, a toda a gente e a respeito de tudo. Haverá, de resto, que descontar o facto de a política ter sido sempre o terreno predilecto das deformações míticas e simbólicas, assim como, na expressão de Maquiavel, das máscaras e das caretas.
Afinal, existem hoje não só condições de controlo da mentira absoluta como se pode entrar para o debate público com posições mais genuínas embora nem sempre muito iguais. Parece-me mesmo despontarem entre a juventude exigências favoráveis a uma cultura política pós-maquiavélica, simultaneamente mais transparente, directa e informal, para a qual os fins não justifiquem os meios, nem subsistam as hipocrisias piedosas. O modo como a juventude respondeu recentemente à convocatória de João Paulo II em Paris (Verão de 1996) pareceu-me uma feliz contestação da cínica pergunta de Estaline sobre qual o número de divisões de que o Papa disporia… Julgo que se pode pelo menos dizer esperançosamente que, para a juventude actual, é mais importante ser verdadeiro em política do que ser de direita ou de esquerda, o que, para além do mérito geracional, é também o produto da despolarização ideológica.
O que me parece estar em causa é não ter sido compreendido por inteiro que uma ordem liberal só pode ser uma ordem moral, tal como uma ordem moral seria perigosa se não fosse igualmente uma ordem liberal. Os níveis de extensão e emancipação da economia e da sociedade liberal no mundo actual implicam automaticamente a impossibilidade de uma legitimação exterior outorgada e uma paralela necessidade de auto-legitimação, auto-regulação e auto-garantia, a partir de valores próprios, comummente partilhados mas já não impostos de fora e de cima.
(continua…)

(Versão ampliada da conferência apresentada ao “Encontro Fé e Cultura”, Coimbra 1997, in “Brotéria” 147 (1998), págs. 297-310)

Um comentário:

JC disse...

Excelente texto sobre as várias "faces" da verdade na vida da sociedade contemporânea actual.

A verdade "doce" e "mole" versus a verdade "dura".

A verdade "situacionista", "economica" e "negociável" em detrimento da verdade do interesse geral.

Por aqui percebe-se que "verdade" temos tido em Portugal nos últimos anos.

" E também não deixou de ser verdade que em democracia não é possível mentir a todo o tempo, a toda a gente e a respeito de tudo."

Foi preciso bater no fundo! E mesmo assim ainda teimam!

"(...) para a juventude actual, é mais importante ser verdadeiro em política do que ser de direita ou de esquerda, o que, para além do mérito geracional, é também o produto da despolarização ideológica."

Percebeu muito bem aquilo que a maioria dos políticos ainda tem dificuldade em ver. O problema é que as coisas não mudam, e essas gerações vão entrando no sistema e perpetuam o próprio sistema.

A maioria das pessoas quer a verdade, os partidos do poder é que não a querem dizer. Tal a corja politica instalada.

Os partidos não têm valores, têm interesses, mas teimam em disfarçar isso com ideologias e querem vende-las ao povo.

Portugal não é um estado de direito democrático, é, como dizia João César Monteiro," um sítio mal frequentado". Que anda há mais de trinta anos a brincar à Democracia.

A palavra "verdade" tomou uma versatilidade neste país, que nem a mentira a saberia inventar.

Homens com o calibre de Francisco Lucas Pires fazem falta a este país! Perdeu-se a vergonha toda e não há referências de Estado. Servir, e não servir-se. Eis, a diferença de quem me parece estava com verdade na Política, na real acepção da palavra.