quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Para lá da (meia) verdade politicamente correcta (1997) (Parte I)

Do ponto de vista político, o totalitarismo político foi a mentira total – uma ilusão chamou-lhe François Furet com alguma delicadeza. Constituiu uma falsificação dos próprios fundamentos da política e do poder. Refiro-me às fontes desta, ou seja à legitimidade de tipo democratista que exibia e, afinal, constituiria um simples disfarce para o regime de nomenklatura; ao direito porque devia pautar a sua acção e foi um seu simples instrumento; aos objectivos de liberdade, desalienação e antecipação que alegava prosseguir e foram completamente postergados pelos de domínio, manipulação e subjugação, sem excepção. O erro de Gorbachev e da chamada “perestroika” foi, aliás, o de ter pensado que uma mera operação de transparência (“glasnost”) poderia ter restaurado uma “ética comunista”, afinal inexistente.
E, no entanto, os problemas da verdade política democrática não estão resolvidos no pós-comunismo. Dir-se-ia mesmo que foi ao “ficar sozinha em casa”, sem espelho e sem inimigo, que a democracia liberal descobriu os seus limites e as suas mazelas. Em Itália chegou a dizer-se que até a Máfia tinha contado com algum grau de complacência objectiva devido ao papel que desempenhara durante a grande guerra e a guerra-fria. O que, em última análise, também significaria que toda a verdade política precisa de uma aferição exterior.
Em qualquer caso, fala-se hoje, a respeito da democracia liberal, com insistência, tanto de uma crise da representação política como de uma crise de valores, ambas facilitando, por vias diferentes, novas falsificações. A repercussão desses novos défices vai projectar-se num sentimento de desafeição, desdém e, sobretudo, alheamento do político (verdrossenheit diz a ciência política alemã). Segundo o Eurobarómetro (Dez. de 1994), 56% dos eleitores europeus diziam-se “não muito” ou “mesmo nada” interessados pela política e um europeu em cada dois não estava “de todo” satisfeito com a democracia no seu país.
A respeito da representação democrática diz-se mesmo que ela também o é no sentido teatral ou que a alternativa está hoje entre populismo e tecnocracia, embora o primeiro possa ser apenas um biombo folclórico da real hegemonia da segunda. Do que se fala é, de facto, de Estado-espectáculo (Schwartzenberg), de “videocracia” (G. Sartori), de “democracia de audiências” (B.Manin), depois do governo de sondagens, em paralelo com a democracia plebiscitária e, mais em geral, a “crise da intermediação”. De facto, os partidos e outras grandes organizações representativas, como os sindicatos, sofrem da perda de militantes, da erosão da fidelização eleitoral e da crise de identidade, ao mesmo tempo que são criticados como “burocracias de voto”. Poderia até alvitrar-se que os mecanismos de “socialização política” estão a sofrer do mesmo tipo de desgaste que já haviam sofrido os da “socialização económica” – por se terem tornado, também eles, um modo de distorção da verdade que eram supostos representar.
A desintermediação sistemática que a “sociedade de informação” tenderá sempre a levar mais longe poderia desembocar, aliás, num neo-medievelismo ou num localismo global que deixariam as actuais unidades políticas e respectivas formas de representação em grande parte no ar. A globalização e o carácter tentacular deste novo processo de informação tornaram o cidadão, primeiro num receptor, “um cliente” no sentido romano, mas depois, com a Internet, num emissor autónomo que dialoga directamente com o espaço público e os centros de poder, sem necessidade de outras mediações.
A situação melhorou, pois, mas, ao mesmo tempo, tornou-se ambígua pois esta nova oportunidade de relacionamento pelas auto-estradas da informação traz consigo um risco de intoxicação informativa e de “saber opcional” (Jean de Munck) ou de cultura “à la carte”, fracturando a visão de conjunto e a possibilidade de direcção coerente que a política cidadã implica. A perda de visão de conjunto e de relação directa com os outros pode ser uma dupla perda moral ao cortar o nexo que fundava o “um por todos e o todos por um”.
Também por isso, sobre a outra crise, a dos valores, se fala de “egoísmo”, “vácuo-moral”, “crise de princípios”, “dissolução da sociedade” (v. o inquérito Sehnsuch nach Werte – Focus, n.º 12/1997, pp. 203 e ss.). Individualismo e laicização são mesmo os dois (contra)-valores tópicos que crescem mais exponencialmente na Europa. A religião e a política aparecem, por outro lado, no último escalão da pauta de interesses sufragados pelos europeus, reflectindo a crise quer dos valores mais transcendentes, no primeiro caso, quer dos mais imanentes ou comuns, no segundo. Tudo se resume, pois, numa crise da “infra-estrutura moral” (Etzioni) que amparava a procura da verdade e da virtude política e chegara a propor a democracia como “religião civil”. É como se o espírito de alerta e luta que prevalecera antes da queda do muro permitisse ao espírito democrático melhor encarecer as suas virtudes e ocultar os seus vícios. Ou talvez as verdades consumadas ou pressupostas sejam simplesmente suspeitas para um espírito liberal. Os fenómenos actuais de crise ocorrem, de facto, quando a democracia se universaliza e alcança o seu auge, como valor comum, à própria escala de Nações Unidas, qual primeiro princípio estruturante de uma nova ordem mundial.
Dir-se-ia que, enquanto ganhava o campeonato mundial, a democracia se ia vendo em dificuldades crescentes nos vários campeonatos nacionais de alguns dos mais velhos dos seus figurinos… Há mesmo quem sugira (Charles Meier num artigo no Foreign Affairs de há uns anos atrás), invocando o exemplo do que sucedeu à Europa no século XIX, a seguir à unificação da Alemanha e da Itália, que, após um grande sucesso histórico, como neste caso o da queda do muro e do fim do comunismo, há tendência para uma involução ou processo descendente.
Para já, a “verdade politicamente correcta” é um dos sub-produtos deste mal-estar. Por enquanto, parece um mal relativamente benigno – uma espécie de meia verdade. Revela, pelo menos, um certo temor da verdade sem correcção política. Tem também algo de linguagem oficial tipo “politiquês” ou, no estilo da beatitude burocrática, serve de biombo às verdades e à linguagem mais “nua e crua”, mais insubmissa, dos estratos populares.
Por vezes, a atitude “politicamente correcta” poderia prosseguir mesmo objectivos “revisionistas” que, aliás, nalgumas universidades americanas levaram a barrelas históricas, envolvendo aspectos centrais de identidade, nomeadamente, o papel das classes e dos sexos (tratados nessa linguagem como “géneros”). Parece, em geral, preocupada com uma formulação de “bom tom” que amacie as relações inter-grupais numa sociedade tipicamente pluralista que procura a integração das minorias, a obtenção de consensos e o alargamento de clientelas eleitorais. Esta atitude dir-se-ia “liberalista”, analítica, crítica de posições dominantes e estereótipos, o que é o seu lado positivo. Ao mesmo tempo, porém, tem efeitos disruptivos e relativizadores sobre a própria valia de educação e dos valores.
Para além disso, o “politicamente correcto” poderia revelar também uma situação de maior impotência da acção política como tal e a dependência do que se tem chamado “pensamento único”. Não deixa de ser curioso que seja no rescaldo do desastre dos grandes determinismos históricos que esta sensação de impotência da vontade democrática se revela. Afinal, é no momento que nos libertamos da história pré-fabricada que estaríamos, não apenas perante o fim das revoluções e das “ideologias”, como até perante a perigosidade da simples “incorrecção política”.
Por outro lado, porém, a “verdade politicamente correcta” podia ser também o subtítulo do dicionário político da globalização. Esta, tal como o “pensamento único”, não deixa senão campo para a política dos intérpretes – não para a dos autores. Como na caverna de Platão, só se vêem sombras. O “politicamente correcto” é uma política de exegetas – não isentos, embora, do moralismo de quem monopoliza o “texto”. Um mundo que chegou à sua última fronteira deixa para trás impotentes e, portanto, irresponsabilizadas todas as “potências” políticas que ainda se tomam ou são consideradas como tal.
Neste quadro, o político está condenado a ser um leitor de sinais ou, na melhor das hipóteses um médium, talvez um organizador de compromissos. Sem alternativas e sem verdadeira autonomia, a política profissionaliza-se e fica condenada a um jogo de espelhos entre caracteres pessoais, os únicos que podem oferecer um contraste aos eleitos. Noutra versão, pode tornar-se num duelo de fórmulas evasivas – de tipo “não excluo nada” – e, eventualmente, com supostos do género “elejam-me para poder fazer o que não vos posso dizer”, tornando assim ainda mais ostensivas omissões e meias-verdades.
Além disso, vai interiorizar a censura externa de que é objecto e que o adjectivo “correcta” que lhe foi aposto implica. Os poderes de censura são agora os que estão nas mãos dos media, dos juízes e dos retratos estatísticos da opinião pública. Os juízos dessa aliança mediática-judicial (Alain Minc) podem chegar a transformar-se em grandes acusações, e a forçar a mudança como nos casos de Clinton nos Estados Unidos (casos Paula Jones e Monica Lewinski) ou de Anson em Espanha (uma suposta conspiração dos media contra Filipe Gonzalez). Suspeita-se é que o jogo de poder já esteja aí tanto ou mais implicado do que a verdade ou, então, que a sorte desta venha a ser fortuita.
Neste contexto não é por acaso que tais poderes em ascensão – os juízes, os media e a burocracia – são basicamente poderes de controlo e interpretação, de mediação ou última instância. Numa segunda fase, porém, os políticos tendem a descarregar neles também os poderes e a responsabilidade de decisão, que se lhes tornaram insuportáveis, até porque é do lado dos novos contra-poderes que parece emergir uma espécie forte de legitimação. Assim se vai operando uma sibilina e também enganadora transferência de poder para instituições que não são supostas exprimir a verdade política originária mas a podem, afinal, paralisar e irresponsabilizar, deixando-a, nomeadamente, inerme perante a avalanche do mercado “sem fronteiras”.
(continua…)

(Versão ampliada da conferência apresentada ao “Encontro Fé e Cultura”, Coimbra 1997, in “Brotéria” 147 (1998), págs. 297-310)

5 comentários:

Anônimo disse...

Lucas Pires foi um político de enorme qualidade, sem dúvida um dos maiores do pós 25-Abril.
Tento imaginar Lucas Pires nos dias de hoje. Como seria recebida pelo "mercado político" a sua razão lúcida, a sua voz serena, tão nos antípodas da política actual? Não sei. Mas de uma coisa tenho a certeza - eu não seria certamente o único a ficar a regozijar-me com a sua presença.

o sibilo da serpente disse...

Fui militante do CDS por causa do Professor e saí do CDS quando ele saiu. Pelo caminho, algumas divergências. Trocámos cartas - infelizmente não sei o paradeiro delas - em que discutimos a criação de um novo partido.
Nas europeias de 1989, corremos o Norte em campanha. O CDS boicotava e nós andavamos por aí. Fizemos Trás-os-Montes, Arcos de Valdevez, Gaia, Coimbra. Em alguns sítios, o Professor pedia-me, à última hora, para improvisar discursos e eu lá ia desenrascando enquanto a casa se compunha.
A ligação já vinha de trás. Creio que foi em 1982 que a JC "institucional" de Coimbra tentou parar a minha candidatura a presidenta da AAC, mas o Professor insistiu que seria eu. Não o deixei ficar mal: não ganhámos, mas tivemos o melhor resultado de sempre na academia.
Lembro-me, também, de uma tarde no Café Ritz, em Coimbra - um café que FLP tão bem conheceu e onde não cheguei a estar com ele - em que com Manuel Queiró e António Lobo Xavier trocámos telefonemas com ele sobre se o CDS devia ou não associar-se ao PSD, creio que na primeira vitória de Cavaco à frente do PSD, para formar governo.
Mais tarde, jornalista do Semanário, estive com ele por diversas vezes. Uma delas em Estrasburgo, com a amizade do Miguel Seabra.
Não se antes se depois, fui assistir ao doutoramento do Professor a Coimbra. Lembro-me de que sofri um bocado com aquilo, porque achei que o júri estava a ser muito agressivo e eu nunca tinha visto um doutoramento. Explicou-me aí o Paulo Mota Pinto que não estivesse preocupado, porque era assim que as coisas funcionavam. E ficamos todos contentes quando, no fim, aquilo correu bem.
Lembro-me, também, que uma noite, num debate num hotel do Porto, ele disse-me que achava que quase todos os políticos eram jornalistas frustrados e eu repliquei-lhe que, provavelmente, haveria também muitos jornalistas que eram políticos frustrados.
Lembro-me, também, que houve um altura em que ele ficou melindrado comigo, por causa de um comentário que fiz na Rádio Nova sobre a sua candidatura ao Parlamento Europeu nas listas do PSD, mas resolvemos isso logo que nos encontrámos.
Lembro-me, por fim, do choque que senti quando soube do seu falecimento. E, aí, fiz o que faço sempre que posso quando morre alguém que eu prezo: não fui ao funeral.
Sim, é verdade - fui um "Pirista".
Deixo os meus cumprimentos à família, sobretudo à Drª Teresa Almeida Garret, que ainda terá uma vaga ideias de algumas destas coisas.

Ângelo Ferreira disse...

Viva!
Excelente ideia esta do blog para colocar os textos de Francisco Lucas Pires.
Habituei-me a admirá-lo, desde criança. Gostava dele como pessoa. Sempre me pareceu, intuitivamente, um Homem de outra dimensão e honestidade. Inspirava confiança.
O falecimento de Francisco Lucas Pires foi para mim um choque tremendo, pois eu sabia que a sua falta seria uma das piores coisas que poderia aconetecer à democracia portuguesa. E assim foi.
Um abraço à família desse grande senhor.

Jacinto Lucas Pires disse...

Em nome da família, muito obrigado a todos. Abraços!

Anônimo disse...

Que maravilha colocarem por aqui os textos do vosso pai.Foi ao acaso que encontrei este blog.Continuem que me dão um prazer enorme.Não agradeça, eu é que agradeço.