segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Um Programa de Governo para o Primeiro Ministério da Cultura em Portugal (parte I)

A elevação dos sectores da Cultura e da Coordenação Científica a Ministério traduz uma diferença de natureza e não apenas uma diferença de grau em relação à situação anterior e é, por si só, a primeira forma ou etapa de realização de um programa nestas áreas.
Esperemos que esta conquista seja hoje e desta vez uma conquista irreversível. Desejo-o pessoalmente porque ela, por si mesma, já incita as ideias a falar em voz mais alta e espero com sinceridade, por isso, que ela se torne uma conquista comum do mundo cultural e da cultura portuguesa.
Na verdade, fala-se muito da criação de “factos políticos”. Mas será de criar factos ou de criar ideias que o país mais precisa? O excesso de factos e a carência de ideias não será o mais perigoso sinal de desastre? Não será a ditadura o próprio regime em que só há factos? Não será até por isso que dela se diz ser o factum?
Por tudo isto, a criação de um Ministério da Cultura e da Coordenação Científica não poderia deixar de aspirar a ser um bem para as ideias e para os homens de ideias – para todas as ideias e para todos os homens de ideias, em relação aos quais não se pretende ser senão um equipamento e um “pivot” da acção conjunta.
Num país a recriar-se ou, pelo menos, a reposicionar-se no mundo, isto não é apenas importante. Julgo que pode ser vital! É que, no confronto com o pré-25 de Abril, um Ministério da Cultura e da Coordenação Científica só pode querer significar o contrário do silêncio, da censura e do dogmatismo cultural. Mas mais do que isso: tem de significar a luta por uma cultura afirmativa, activa e própria – luta não por acção directa, mas por alargamento do campo de expressão cultural dos portugueses. Por sua vez, na trajectória da revolução democrática do 25 de Abril, a criação do novo Ministério há-de traduzir também a longa marcha que nos permitiu passar e sair do ideologismo barato, importado e cego para as ideias mais claras e próprias sobre nós próprios como país... A criação do novo Ministério há-de traduzir também a longa marcha que nos permitiu passar dos pensamentos feitos com bandeira e pregão, até ao pensar livre e real do país, ao pensar na primeira pessoa individual e na primeira pessoa colectiva. A dignidade e a grandeza da Cultura provêm de que ela se gera directamente do país e através dele e não é apenas a sombra mendiga de uma luta originariamente política, travada no interior do Estado.
Não quero esquecer, porém, nesta altura, o quanto este percurso deve aos deputados que nesta Assembleia têm batalhado pela Cultura, aos sucessivos titulares da Secretaria de Estado da Cultura e aos próprios serviços da Secretaria de Estado da Cultura, os quais, de uma maneira ou outra, sempre tiveram a exigência cultural como horizonte e paixão. Este é, de facto, um dos domínios que mais pode merecer uma paixão, como bem o provou o último titular da Secretaria de Estado da Cultura, Dr. Brás Teixeira.
Trata-se, aliás, de uma paixão crescente por toda a parte. Aqui mesmo neste Parlamento nunca se tinha visto um tão amplo e vasto debate cultural. E, mal abertas as portas do meu jovem Ministério, descobri de uma assentada que nesse mesmo mês receberia entre nós nada menos que do que o Sr. Ministro da Cultura do Oman, o Sr. Ministro das Artes da Grã-Bretanha, o Sr. Ministro do Multiculturalismo do Canadá e, um pouco mais tarde, estavam previstas outras visitas ou aproximações desse tipo. É claro que isto se deve sobretudo à compreensão do Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros. Mas não será também verdade que é uma nova era de preocupações culturais que se está a abrir? Quando é que houve tantos Ministros da Cultura por toda a parte e porquê? Porque é que será agora que se começa a falar de uma Europa Cultural, ganhando a dianteira sobre a própria Europa económica?

Talvez a explicação resida nisto: sem querer ser épico ou profético, o mundo está cada vez mais entre um renascimento cultural e uma hecatombe militar ou económica. Assistimos já hoje às pequenas hecatombes, económicas e militares, mas assistimos também já hoje aos pequenos renascimentos culturais. É por isso que o futuro optimista da História passa, mais do que nunca, pela Cultura e pela Ciência. Talvez até mais do que pela política e pela economia. É por isso que a cultura não é hoje mais serva da economia e da política e esse é o fenómeno que a criação dos vários Ministérios da Cultura também revela. É nesse horizonte da Ciência e da Cultura que se projecta a esperança. É nos outros horizontes que projectam as dificuldades e as catástrofes.
Entre nós, aliás, a criação de um Ministério da Cultura e da Coordenação Científica tem uma companhia sintomática: é a extinção, pela primeira vez, do departamento governativo próprio e autónomo para a informação. Neste paralelo, há um sinal revelador que não pode deixar de querer dizer objectivamente que a própria informação e Comunicação Social deverá ser mais, a partir de agora, uma questão de Cultura, como aliás já deveria resultar do n.º 3 do artigo 73.º da actual Constituição Política. O Poder já não quer mais embrulhar o país no seu jornal e os jornais, todos, poderão ser mais uma expressão viva, quotidiana e realista da própria cultura em movimento.
A tarefa não está ainda acabada mesmo neste plano. Mas há, desde já, condições para pugnar, com esperança, por uma melhoria da consciência pública em relação aos problemas da Cultura e da Ciência, por uma participação de ambas em todo o planeamento económico e político do Estado e por uma maior comparticipação e empenhamento de todos os aspectos e instituições da vida social, de todas as zonas do país e de todos os estratos sociais no desenvolvimento cultural e científico do país.
É, desta vez, uma procura a fazer de baixo para cima e não de cima para baixo. É porém uma procura vital, mais do que a da lâmpada de Aladino ou a da candeia de Diógenes, mas com a mesma noção de que, enquanto não encontrarmos essa nova luz, ainda que venhamos a estar ricos, continuaremos a estar às escuras.
A verdade é que as sociedades da Cultura e da Ciência são as sociedades modernas e as sociedades do futuro. É essa talvez até, por enquanto, o único modo de definir a sociedade pós-industrial. O seu caminho será longo e pode ser que mais entre nós do que entre alguns dos nossos parceiros. Mas é aqui, é nessa área, que melhor poderemos recuperar o atraso dos nossos relógios e é por aí que passará hoje a própria História, toda a mudança e toda a renovação da sociedade.


(texto de apresentação do programa do 1º Ministério da Cultura e da Coordenação Científica na Assembleia da República em 1982 - in "Com Portugal no Futuro", de Francisco Lucas Pires, IDL, Lisboa 1985)

Um comentário:

Gaivota Maria disse...

"A dignidade e a grandeza da Cultura provêm de que ela se gera directamente do país e através dele e não é apenas a sombra mendiga de uma luta originariamente política, travada no interior do Estado."

Foi este caminho que os governantes
que temos sido obrigados a aguentar nunca encontraram. Que o reviver destas palavras do Dr. Lucas Pires mais do que uma recordação se torne uma mensagem que ilumine as mentes políticas deste país.